A conta chegou: a tragédia climática no Rio Grande do Sul

Leonardo Boff

Interrompo minha reflexão sobre os vetores da crise sistêmica atual e as eventuais saídas da crise, em razão da tragédia ambiental ocorrida no Rio Grande do Sul. As intensas chuvas e as catastróficas enchentes, com as águas invadindo cidades  inteiras, destruindo-as em parte, deslocando centenas de famílias, causando milhares de refugiados ou de desaparecidos e mortos, nos fazem pensar.

Antes de mais nada nossa profunda solidariedade às populações atingidas por esta calamidade de proporções bíblicas.Expressamos nossa com-paixão,pois como ensinava Santo Tomás na Suma Teológica “a compaixão em si é a virtude maior. Pois faz parte da compaixão derramar-se sobre os outros – e o que é mais ainda-  ajudar a fraqueza e a dor dos outros”. Todo o país se mobilizou. O povo brasileiro mostrou o melhor de si, sua capacidade de solidariedade e disposição de ajuda, a despeito dos perversos que exploram a desgraça para fins particulares e por mentiras e calúnias.

Seria errôneo pensar que se trata apenas de uma catástrofe natural, pois de tempos em tempos ocorrem fenômenos semelhantes. Desta vez a natureza da tragédia possui outra origem. Temos a ver com a nova fase em que entrou o planeta Terra:a instalação de um novo estágio, caracterizado pelo aumento do aquecimento global. Tudo isso de origem antropogênica, quer dizer, produzida pelos seres humanos mas mais especificamente pelo capitalismo anglo-saxão,devastador dos equilíbrios naturais.

Há negacionistas em todos as esferas, especialmente entre os CEOS das grandes empresas e naqueles que se sentem bem na situação de privilégio, assentados sobre uma situação de conforto. Mas a avalanche de transtornos nos climas, a irrupção de eventos extremos, as ondas de calor intenso e de secas severas, os grandes incêndios, os tornados e as enchentes apavorantes, constituem fenômenos inegáveis. Está tocando a pele dos mais resistentes. Começaram também eles a pensar.

Considerando a história do planeta que já existe há mais de 4 bilhões de anos, constatamos que  aquecimento global participa da evolução e do dinamismo do universo;  este está sempre em movimento e se adaptando às circunvoluções energéticas que ocorrem no decorrer do processo cosmogênico. Assim o planeta Terra conheceu muitas fases, algumas de extremo frio, outras de extremo calor como há 14 milhões de anos. Nesta época de calor extremos não existia ainda o ser humano que somente irrompeu na África há 7-8 milhões de anos e o homo sapiens atual há apenas 200 mil anos.

 O próprio ser humano percorreu várias etapas em seu diálogo com a natureza: inicialmente predominava uma interação pacífica com ela; depois passou a uma intervenção ativa nos seus ritmos, desviando cursos de rios para a irrigação, cortando territórios para estradas; passou para uma verdadeira agressão da natureza, precisamente a partir do processo industrialista que se aproveitou dos recursos naturais para a riqueza de alguns à custa da pobreza das grandes maiorias; esta agressão foi levada por tecnologias eficientes a uma verdadeira destruição da natureza, ao devastar inteiros ecossistemas, pelo desflorestamento em função da produção de commodities, pelo mau uso do solo impregnando-o de agrotóxicos, contaminando as águas e os ares.Estamos em plena fase de destruição das bases naturais que sustentam nossa vida. Digamos o nome: é o modo de produção/devastação do sistema capitalista anglo-saxão hoje globalizado, com seus mantras: maximização do lucro através da superexploração dos bens e serviços naturais, no quadro de severa competição sem qualquer laivo de colaboração.

Este processo teve um pesado custo, sequer tomado em conta pelos  operadores deste sistema. Os danos naturais e sociais  eram considerados como efeitos colaterais que não entravam na contabilidade das empresas. Ao estado e não a eles cabia enfrentar tais taxas de iniquidade.

A Terra viva começou a reagir enviando vírus, bactérias, todo tipo de doenças, tufões, tempestades rigorosas e por fim um aumento de sua temperatura natural. Ela entrou em ebulição. Iniciamos um caminho sem volta. São os gazes de efeito estufa:o CO2, o metano (28 vezes mais danoso que o CO2), o óxido nitroso e o enxofre entre outros.Só em 2023 foram lançados na atmosfera 40,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono, com consta no relatório da COP 28, realizada no Cairo.

Vejamos os níveis de crescimento desse gás: em 1950 as emissões eram de  6 bilhões de toneladas; em 2000 já eram 25 bilhões;em 2015 subiu para 35,6 bilhões; em 2022 foram 37,5 bilhões e finalmente em 2023,como referimos, foram 40,9 bilhões de toneladas anuais.Esse volume de gazes funciona como uma estufa, impedindo que os raios do sol retornem para o universo, criando uma capa quente, ocasionando o aquecimento do inteiro planeta. Acresce dizer que o dióxido de carbono,CO2, permanece na atmosfera por cerca de 100 a 110 anos.

Como a Terra pode digerir semelhante poluição? O acordo de Paris na COP de 2015 estabelecia cotas de redução desses gazes com  a criação de energias alternativas (eólica, solar, das marés). Nada de substancial foi feito. Agora chegou a conta a ser paga por toda a humanidade: um aquecimento irreversível que tornará algumas regiões do planeta na África, na Ásia e também entre nós, inabitáveis.

O que estamos assistindo no Rio Grande do Sul é apenas o começo de um processo que, mantido o tipo atual de civilização dilapidadora da natureza, tende a piorar. Os próprios climatólogos alertam: a ciência e a técnica despertaram tarde demais para essa mudança climática. Agora não poderão evitá-la, apenas advertir da chegada de eventos extremos e de  mitigar seus efeitos danosos.

Terra e Humanidade deverão adaptar-se a essa mudança climática. Idosos e crianças e muitos organismos vivos terão dificuldade de adaptação e irão sofrer muito e até morrer. A Mãe Terra daqui por diante conhecerá transformações nunca dantes havidas. Algumas podem dizimar as vidas de milhares de pessoas. Se não cuidarmos, o planeta inteiro poderá ser hostil à vida da natureza e à nossa vida. No seu termo, poderemos até desaparecer. Seria o preço de nossa irresponsabilidade, desumanidade e descuido da natureza que  tudo nos dá para viver.Não conseguimos pagar a conta.

Leonardo Boff escreveu Como cuidar da Casa Comum: como protelar o fim do mundo, Vozes 2024; O doloroso parto da Mãe Terra, Vozes 2021; A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra,  Vozes 2021.

Warum ist gesellschaftspolitisches Engagement heute so schwierig?

     Leonardo Boff

Wir erleben derzeit einen besorgniserregenden Rückzug der Basis und verschiedener sozialer Bewegungen, vor allem der politischen, aus dem Engagement für die Umgestaltung der Gesellschaft, sei es auf nationaler oder globaler Ebene. Es ist wichtig zu erkennen, dass es ein starkes Gefühl der Ohnmacht und auch der Melancholie gibt. Abgesehen davon erleben wir auch, dass die Universitätsjugend in den zentralen Ländern (USA und Europa) gegen die unverhältnismäßige, wahllose und volksmörderische Reaktion des Staates Israel gegen die Bevölkerung des Gazastreifens als Reaktion auf den Terrorakt der Hamas am 7. Oktober letzten Jahres rebelliert.

Das politische Establishment, das die Welt vom globalen Norden aus dominiert, reagiert mit ungewöhnlicher Gewalt gegen die Demonstranten. In Deutschland wird jede Demonstration für die Palästinenser im Gazastreifen offiziell verboten und dann beim kleinsten Anzeichen von Unterstützung für die palästinensische Sache und gegen den dort stattfindenden Völkermord unterdrückt. In den USA nimmt die polizeiliche Repression gewaltsame Züge an, die sich gegen Studenten und Universitätsprofessoren und sogar gegen einen Präsidentschaftskandidaten richten.

Bei uns in Brasilien und in Lateinamerika im Allgemeinen gibt es keine öffentlichen Demonstrationen, nicht einmal gegen den Völkermord, insbesondere an 14.000 kleinen Kindern, und den Tod von etwa 80.000 Bürgern unter schwerem israelischen Bombardement, bei dem in krimineller Weise künstliche Intelligenz (KI) eingesetzt wird, um bestimmte Menschen und ihre gesamten Familien in ihren eigenen Häusern zu ermorden.

Wir müssen versuchen zu verstehen, warum diese Trägheit entstanden ist. Ich werde einige Punkte erwähnen, die uns einen Einblick in die derzeitige Situation geben, sowohl angesichts der ernsten Lage in der Ukraine, die von der russischen Brutalität verwüstet wird, als auch angesichts des Massakers und des Völkermords im Gazastreifen.

In weiten Teilen der Gesellschaft, insbesondere im Globalen Süden, aber auch in Teilen des Globalen Nordens, herrscht ein starkes Gefühl der Ohnmacht. Erstens hat sich das kapitalistische System in seiner verschärftesten Ausprägung des Neoliberalismus der Wiener/Chicagoer Schule objektiv der ganzen Welt aufgezwungen. Diejenigen, die sich dagegen wehren, sind politischer und ideologischer Unterdrückung und schließlich Staatsstreichen ausgesetzt, wie im Fall der Amtsenthebung von Dilma Russeff. Ziel ist es, das durchzusetzen, was Carl Polanyi 1944 „Die große Transformation“ nannte: den Übergang von einer Marktgesellschaft zu einer reinen Marktgesellschaft. Mit anderen Worten, alles wird zur Ware: menschliches Leben, Organe, Saatgut, Wasser, Lebensmittel, alles wird auf den Markt gebracht und erhält seinen Preis. Dies wurde bereits 1847 von Marx in „Das Elend der Philosophie“ vorausgesagt.

Diese objektive Tatsache ruft eine subjektive Reaktion hervor: Man beginnt, die Welt ohne Hoffnung zu sehen, dass es keine brauchbare Alternative zu dieser globalisierten Ungeheuerlichkeit gibt. Dies wird durch TINA (There is no Alternative) ausgedrückt: „Es gibt keine Alternative“. Die Folge ist ein Gefühl der Ohnmacht und verdrängte Enttäuschung. Dies führt zu einer defätistischen Haltung, die besagt, dass es sich nicht lohnt, gegen das System anzugehen, weil es zu groß ist und wir zu klein sind. Sie sind gezwungen, Zugeständnisse zu machen, um in einer zutiefst ungleichen und ungerechten Welt zu überleben, was Melancholie erzeugt. Melancholie bricht aus, wenn es kein Licht am Ende des Tunnels gibt. Warum sollte man sich also für eine Alternative einsetzen, die keine Aussicht auf Erfolg hat? Diese Art von Welt ist hoffnungslos, denken nicht wenige. Wir müssen uns an sie anpassen, um so wenig wie möglich zu leiden.

Ein zweiter Punkt ist die perverse Strategie des herrschenden Systems: die Schaffung einer Kultur des Konsums. Es werden so viele begehrenswerte Objekte wie möglich angeboten, auch wenn mehr als 90 % davon völlig nutzlos und unnötig sind. Es geht darum, eine der mächtigsten Kräfte der menschlichen Psyche zu manipulieren: das Begehren, dessen Natur bereits von Aristoteles erkannt und von Freud als unbegrenzt bestätigt wurde. Namhafte Psychologen (z. B. Mary Gomes und Allen Kenner) haben bereits gesagt, dass „dies das größte psychologische Projekt ist, das die menschliche Spezies je hervorgebracht hat“: zu verhindern, dass die Bürger sich als Bürger verstehen und zu einfachen Konsumenten und konsumsüchtigen Verbrauchern werden.

Um sie zu verführen, werden Billionen von Dollar für die Werbung in den Massenmedien und mit allen möglichen Mitteln der Verführung ausgegeben. Dies entspricht dem Sechsfachen der jährlichen Investitionen, die erforderlich sind, um der gesamten Menschheit hochwertige Lebensmittel, Gesundheit, Wasser und Bildung zu garantieren. Eine größere Perversität kann man sich kaum vorstellen. Aber sie ist in der allgemeinen Lebensweise der Menschheit, die daraus hervorgegangen ist, vorherrschend.

Verinnerlichte Ohnmacht und Melancholie führen dazu, dass die Mehrheit der Menschen, und leider auch die jungen Menschen, nicht ermutigt werden, sich sozial und politisch in einer Bewegung oder einem Projekt zur Veränderung zu engagieren. Die Bildung in formalen Institutionen ist entscheidend für die Sozialisierung dieser Lesart der Realität. Vandana Shiva, eine große Wissenschaftlerin und feministische Ökologin aus Indien, nennt dies die „Monokultur der Köpfe“. Diese Monokultur erzeugt bei den Schülern das naive Bewusstsein, dass dies die gute und wünschenswerte Welt ist. Sie erkennen nicht, dass sie vom herrschenden System vereinnahmt und zu dessen Reproduzenten gemacht werden.

Gegen all dies setzte Paulo Freire sein erzieherisches und befreiendes Projekt, das mit der „Pädagogik der Unterdrückten“ und der „Erziehung als Praxis der Freiheit“ begann und mit der „Erziehung mit Liebe und Hoffnung“ endete. Er prägte den Ausdruck „hoffen“: sich nicht zurücklehnen und darauf warten, dass sich die Dinge von selbst ändern, sondern die Bedingungen dafür schaffen, dass die Hoffnung ihre transformativen Ziele erreichen kann.

Wie können wir uns von einem naiven, manipulierten Bewusstsein befreien? Der Prozess der Bewusstseinsbildung reicht nicht aus, denn kritisch zu verstehen, was geschieht, bedeutet nicht, zu ändern, was geschieht. Wir müssen zu einer alternativen Praxis übergehen und dem herrschenden System ein anderes, egalitäres, nicht konsumorientiertes Gesellschaftsparadigma entgegensetzen, das solidarisch ist mit einer Produktionsweise, die auf den Rhythmen der Natur basiert (Agrarökologie und Kreislaufwirtschaft), und einer anderen Art von ökologisch-sozialer Demokratie von unten nach oben, in der die Rechte der Natur und der Mutter Erde anerkannt werden, um das Ganze, die Menschheit und die Natur, im großen gemeinsamen Haus, der Mutter Erde, zu schaffen.

(Die Reflexion, die Suche nach Alternativen, wird im nächsten Artikel folgen)

Übersetzt von Bettina Goldhacker

O sistema agroalimentar mundial – em crise terminal.

Jean Marc von der Weid

Jean Marc von der Weid é um dos que melhor conhece os problemas agrários do país e em termos mundiais. Publicamos este texto, extraido do IHU de30/4/2024.Ele nos oferece uma visão geral dos problemas ligados à alimentação da humanidade e as crises que poderemos enfrentar.LBoff

30 Abril 2024

“Todos os analistas insistem que as causas da fome e subnutrição no mundo se explicam por problemas de acesso à alimentação e não por falta de produto”.

A análise é de Jean Marc von der Weid, economista e agroecólogo, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 20-04-2024.

        O sucesso do sistema agroalimentar vigente

Desde meados do século passado o sistema produtivo conhecido como Revolução Verde expandiu-se celeremente e hoje ocupa a totalidade das terras cultivadas nos países desenvolvidos e a ampla maioria daquelas dos países antigamente chamados de Terceiro Mundo e hoje de Sul Global. Esta expansão permitiu um aumento extraordinário da produção agropecuária ao ponto dos mais otimistas considerarem que o fantasma de Malthus tinha sido definitivamente exorcizado. Todos os mega produtores agrícolas atualmente (EUA, Brasil, EU, China, Índia, Argentina, Canadá, Austrália, Rússia e outros menores) aplicam este sistema, marginalizando a produção tradicional camponesa.

O sistema agroalimentar mundial produz 2900 calorias por pessoa por dia, descontadas as perdas, desperdícios, conversão para alimentação animal e bioenergia. Isto permitiria alimentar (apenas no sentido de fornecer as calorias necessárias) 9 bilhões de humanos, mais do que a população atual do planeta. (relatório FAO, 2016)

Todos os analistas insistem que as causas da fome e subnutrição no mundo se explicam por problemas de acesso à alimentação e não por falta de produto. Em termos relativos, o efeito da expansão deste sistema foi a redução da fome no planeta como um todo, embora em números absolutos o ano de menor contingente de famintos ainda registrou mais de 700 milhões de pessoas, no final dos anos 90. Atualmente este número chega a 850 milhões (FAO), sendo que outros analistas elevam este número para mais de 1 bilhão. Entretanto, são muitos os países, e não só entre os mais pobres, onde a fome é endêmica.

Apesar da percepção generalizada de sucesso deste sistema, muitas vozes já levantavam dúvidas e críticas desde os anos 1980. Estas vozes hoje são muito mais incisivas e tem muito mais ressonância do que no passado. Entidades pouco suspeitas de ideologismos como vários organismos da ONU (FAO, UNCTAD, Relatoria do Direito Humano à Alimentação, UNDP, UNEP e outros), o IPCC e até (em termos menos críticos) o Banco Mundial, vêm publicando estudos e projeções cada vez mais veementes sobre a crise alimentar mundial e seus prováveis desdobramentos.

O estudo elaborado pelo IAASTD (International Assessement of Agriculture Knowledge, Science and Technology for Development) promovido Banco Mundial e pela FAO e apresentado em 2009, indicou múltiplos fatores de insustentabilidade do atual sistema agroalimentar mundial, depois de quatro anos de pesquisas com centenas de cientistas, confirmando uma ampla gama de estudos parciais realizados nos últimos 20 anos por dezenas de entidades multilaterais e nacionais.

Sinais de esgotamento do sistema

Os sinais da crise começam com a percepção de que o sistema tinha chegado, na segunda metade dos anos 1980, a um estancamento. Isto se mediu por vários fatores.

O primeiro foi a diminuição (ou o estancamento e até decréscimo) do ritmo do aumento das produtividades das culturas, com as novas variedades desenvolvidas cientificamente oferecendo apenas pequenos incrementos a cada ano, após três décadas de avanços significativos. Estes modestos incrementos, entretanto, não chegaram a compensar o aumento do número de consumidores.

O segundo foi a crescente necessidade de aumentar a fertilização das culturas apenas para manter as produtividades.

O terceiro foi crescente perda de produção devido à multiplicação de pragas e doenças sem que o uso, mesmo ampliado, de agrotóxicos pudessem controlá-las.

O uso de engenharia genética foi anunciado como um grande salto à frente, mas após 30 anos de aplicação resultou apenas em avanços nos lucros das empresas de biotecnologia. Não houve avanços em termos de aumento de produtividades nem diminuição no uso de agrotóxicos. Isto sem falar nos cada vez mais numerosos e dispendiosos processos de consumidores contra as empresas de biotecnologia, condenadas por impactos na saúde.

As carências estruturais do sistema agroalimentar

As mencionadas críticas, já preocupantes por si mesmas, empalidecem quando se analisam os impactos já visíveis e os previsíveis de carências inerentes ao próprio sistema. O sistema agroalimentar está submetido a um conjunto de fatores que o estão levando a uma crise terminal, colocando em risco toda a humanidade. Qualquer um destes fatores leva à inviabilização do sistema, mas a sua combinação acelera o processo.

O primeiro fator tem a ver com o fato de que o sistema agroalimentar depende de recursos naturais para produzir: os renováveis, como solo, água e biodiversidade e os não renováveis, como petróleo, gás, fósforo e o potássio. Os primeiros estão sendo destruídos e os segundos estão sendo esgotados.

O esgotamento dos recursos naturais não renováveis – petróleo e gás

O esgotamento das reservas de petróleo é objeto de debates desde os anos 50, quando o geólogo americano King Hubert projetou o esgotamento das reservas americanas para o ano 1970. A projeção de King se confirmou, mas a que ele fez para a produção mundial, o ano de 2000, não. Mas o erro, desculpável pela maior dificuldade de acessar dados precisos em todo o mundo, foi de apenas oito anos.

Hoje ninguém discute o fato de que a oferta do chamado petróleo convencional estancou em 2008 e hoje oscila levemente em um patamar estável. Como a demanda não parou de crescer, a corrida para explorar petróleo em formas ditas não convencionais explodiu, estimulada pelos preços mais altos do convencional.

O dito petróleo não convencional é o explorado em águas profundas, como o nosso pré-sal ou as jazidas do Golfo do México e do Mar do Norte, todos, menos o primeiro, já em declínio acentuado. Também são óleos não convencionais os extraídos das areias betuminosas do Canadá, ou através do fracking de rochas porosas nos Estados Unidos, ou de depósitos de xisto. No entanto, apesar do sucesso imediato da oferta destes óleos, as previsões apontam para um esgotamento ainda nesta década. E o custo destes produtos é maior do que na exploração de petróleo convencional, além dos impactos ambientais serem muito maiores. Ficam ainda na reserva os chamados óleos ultrapesados, como os da bacia do Orenoco, na Venezuela. No frigir dos ovos, os analistas confluem na avaliação de que nos aproximamos de um momento em que a oferta não vai poder cobrir a demanda.

Nada disso significa que o petróleo, em todas as suas formas, convencionais ou não, vai desaparecer de um dia para o outro. Mas vai começar a rarear e, sobretudo, vai ficar mais caro a cada ano. Na crise de 2008 o preço do barril de Brent, referência de mercado para o petróleo convencional, chegou a um pico de 130,00 dólares e foi o motor de uma crise financeira mundial. Hoje ele está em 90,00 dólares e subindo.

Não é exagero dizer, como alguns autores, que a “comida é petróleo digestível”. O sistema agroalimentar depende totalmente do petróleo, quer como energia para mover tratores e máquinas agrícolas ou para a produção de fertilizantes e agrotóxicos, quer como combustível para o transporte e para o processamento. O aumento dos preços do petróleo fere o sistema no coração e projeta aumentos de preços dos alimentos, no imediato, e a diminuição da oferta, no médio e no longo prazo.

Como as reservas de gás ainda estão mais elásticas, ele pode vir a substituir o petróleo por algum tempo, mas não muito. As previsões para a oferta de gás miram nos meados da próxima década como provável início do esgotamento.

O esgotamento das reservas de fósforo

O segundo produto natural não renovável de imenso peso na agricultura é o fósforo. Nenhuma planta pode existir sem dispor de fósforo em doses variadas segundo a espécie. Quando há carência deste mineral o efeito pode ser, de acordo com o caso, a perda de produtividade e a maior fragilidade frente a doenças e pragas.

As reservas de fósforo no mundo estão concentradas em poucos países, sendo que as maiores e ainda menos exploradas se encontram em um território disputado pelo Marrocos e pelo povo Saaruí. A previsão do esgotamento é para mais duas décadas, mas os custos da extração estão em constante aumento pelo fato de que as jazidas mais acessíveis já estarem em processo de esgotamento.

O Brasil é altamente dependente das importações de fosfatos, do Canadá ou da Rússia e Ucrânia. A agricultura chinesa sempre usou como fertilizante o composto de esterco, animal ou humano. Isto foi substituído, a partir dos anos 80, pelo uso cada vez mais intensivo de fertilizantes químicos. Com uma população cada vez mais urbana, os chineses necessitariam adotar sistemas de coleta e tratamento em escala industrial. É o mesmo caso para o Brasil, com o agravante de sermos altamente deficitários na coleta e tratamento de esgoto ou de lixo.

É preciso registrar, também, que o uso de adubos químicos solúveis implica em perdas da ordem de 50% dos produtos, parcela que nunca chega a ser utilizada pelas plantas e que se perde carreada pelas chuvas para poluir lençóis freáticos, lagos, rios, reservatórios e o mar. Já existem processos modernos de aplicação modulada de adubos químicos e o uso de formas não diretamente solúveis pela água, mas por ação das próprias plantas. Mas estas práticas mais avançadas não são amplamente utilizadas, ainda, por serem mais caras. Os subsídios públicos para o uso de fertilizantes têm a ver com este diferencial de custos e necessitariam de ser eliminados.

Recursos naturais renováveis – solos

Mesmo desconsiderando previsões mais pessimistas que indicam o esgotamento dos solos férteis entre 30 e 60 anos, não confirmadas por estudos científicos, há suficientes indicadores para que se acendam os sinais vermelhos de alarme.

A FAO indica que 33% de todos os solos no mundo estão degradados pela erosão, salinização, compactação e contaminação química. A perda de solos agricultáveis é estimada, pela mesma fonte, em 12 milhões de hectares por ano, enquanto 290 milhões de hectares estão em alto risco de desertificação. Já os processos de esgotamento de solos, com perda de nutrientes essenciais, afetam a produtividade de 20% das culturas. Por outro lado, as áreas de pastejo tem decréscimos de produtividade entre 19% e 27%, segundo o tipo de bioma (grasslands e rangelands) (UN Department of Economic and Social Affairs, 2012).

Em todos os estudos mencionados os impactos sobre o solo derivam das práticas da agricultura convencional.

Água

O sistema agroalimentar dominante é o maior consumidor de água entre todas as atividades humanas, em média mundial, 70% do total de extrações. As áreas irrigadas vêm dobrando a cada década desde os anos 50, na medida em que vai se disseminando em todo o mundo uma dieta que cobra altos investimentos o uso deste recurso. Para dar alguns exemplos: um hambúrguer requer 2240 litros de água e uma xícara de café, 140. A UNEP (United Nations Environment Program) adverte que, se esta trajetória continuar, a falta de água vai provocar perdas de até 25% da produção de alimentos.

O rebaixamento de lençóis freáticos por consumo superior às taxas de reposição afeta maciçamente países como China, Índia, Irã, México e muitos outros. Por outro lado, vários grandes rios passam meses ao ano sem ter água correndo, fruto das retiradas para irrigação, entre eles o Amarelo (China), Indo e Ganges (Índia), Colorado e Grande (EUA). Grandes lagos como o Aral e Chade estão quase totalmente secos, enquanto grandes aquíferos vão se esvaziando, como o Ogallala (EUA) e o Guarani (Brasil e Paraguai) está sendo contaminado por agrotóxicos e fertilizantes.

Biodiversidade

O abastecimento alimentar vem sofrendo um constante estreitamento na variedade de produtos ofertados. Das mais de 50 mil plantas comestíveis existentes, apenas três (arroz, milho e trigo) respondem por 2/3 de todas as ingestões calóricas dos consumidores e 90% de toda a alimentação depende de apenas 15 produtos. Historicamente esta situação indica um alto risco para o abastecimento, sendo que ele é ainda mais grave pelo fato de que este reduzido número de plantas é produzido a partir de um muito pequeno número de variedades de cada uma delas.

As perdas da biodiversidade agrícola no último século foram gigantescas, como demonstra um estudo do USDA que comparou o número de variedades com sementes colocadas no mercado americano em 1903 com aquelas guardadas no laboratório nacional de estocagem de sementes em 1983, indicando a extinção de 93% delas.

Alterações climáticas globais

Para além das perdas dos recursos naturais renováveis e do esgotamento dos não renováveis, o sistema agroalimentar está seriamente ameaçado pelo aquecimento global e as consequentes mudanças no clima.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o IPCC vem apontando, a cada novo relatório, uma aceleração do aquecimento global, provocado pelo crescente uso de combustíveis fósseis e pela expansão da agricultura e da pecuária. A meta limite assignada no Acordo de Paris em 2014, um aumento máximo de 1,5º C na temperatura média mundial, estimado para ocorrer até 2040, já está sendo atingido em 2024. Não é ainda a média anual, mas nos meses mais quentes este índice foi alcançado e deve ser anualizado nos próximos anos. O IPCC já está indicando que um aquecimento de 2º C é inevitável até 2030, mesmo se as emissões de gases de efeito estufa (GEE) forem eliminadas imediatamente. Isto se dá pelo delay entre a emissão de gases e seu efeito no aquecimento.

A agricultura industrial e o sistema agroalimentar como um todo tem um gigantesco impacto neste processo. As emissões de GEE da agricultura e da pecuária (11 a 15%), junto com o seu impacto nos desmatamentos (15 a 18%), representam 26 a 33% do total. Por outro lado, o conjunto do sistema agroalimentar, incluindo transportes (5 a 6%), processamento e embalagem (8 a 10%) refrigeração e supermercados (2 a 4%) e desperdícios (3 a 4%) chega a representar entre 44 e 57% de todas as emissões de GEE (ETC e Grain).

O mero aquecimento do planeta impacta pesadamente a agricultura, provocado pelo estresse das altas temperaturas. Com o aquecimento alcançando os fatídicos 2º C são esperados efeitos de até 30% de perdas na produtividade das plantas, dependendo da espécie. Por outro lado, o clima está se tornando visivelmente mais instável e imprevisível, com secas e inundações mais frequentes e intensas, também com grandes impactos na produtividade das plantas.

Maiores temperaturas também propiciam uma maior multiplicação de pragas afetando as produções. Finalmente, o aquecimento está provocando o degelo acelerado e a consequente elevação do nível dos oceanos. Marés cada vez mais altas já estão inviabilizando a produção em áreas costeiras baixas no Bangladesh, Paquistão, Índia e China, enquanto enchentes gigantescas afetam milhões de pessoas em todo o mundo, obrigando o deslocamento em massa de populações.

Para completar este quadro sombrio é preciso ainda lembrar que o IPCC predisse, em 2018, que 32% da superfície terrestre será árida antes mesmo do aquecimento global chegar aos 2º C.

Em resumo, estes dados são apenas uma amostra do conjunto muito mais amplo de fatores que apontam para a conclusão a que chegou a FAO em um evento científico em 2014: “business as usual is not an option”. Em bom português: mais do mesmo não é uma opção.

E qual é a opção? ou as opções?

Antes de apresentar as opções e discutir a sua validade, é bom lembrar que a crescente onda de críticas ao modelo agroalimentar convencional não significou uma mudança nos rumos da forma de se produzir no setor agrário. As formas alternativas de produção estão se multiplicando em todo o mundo, mas representam ainda apenas uma fração diminuta do output total do setor agropecuário. Em outras palavras, os elementos apresentados acima como fatores de insustentabilidade estão se agravando e arrastando a humanidade para o desastre. Mesmo as entidades como a FAO, por exemplo, que tinham feito declarações firmes sobre a insustentabilidade do modelo dominante, continuaram apoiando, nas suas atividades, os mesmos paradigmas que levavam a esta insustentabilidade.

Esta realidade se explica pelo poderio das empresas que controlam as várias etapas do sistema agroalimentar. Um punhado de transnacionais domina a produção de fertilizantes, de agrotóxicos, de maquinário, de produtos veterinários e de sementes, utilizados por um número cada vez menor de grandes produtores, que vão concentrando a economia agrária. No setor de transformação a concentração vai no mesmo caminho, assim como no comércio de atacado. Até mesmo no mais pulverizado setor de comércio varejista a concentração se manifesta, embora em níveis menos impressionantes.

E, por trás destas megaempresas, o peso do setor financeiro vem se tornando cada vez maior. Pode-se dizer que esta aliança entre o capital produtivo e o financeiro determina os rumos do sistema agroalimentar, influenciando desde a opinião pública até governos e parlamentos nacionais e, em parte, organismos multilaterais.

Este predomínio econômico, que se reflete nas instituições nacionais e internacionais, faz com que o modelo siga, impavidamente, produzindo com os mesmos vícios de sempre. Criaram-se algumas “alternativas” que não escapam de aplicar os mesmos paradigmas, no máximo racionalizando e buscando minimizar alguns dos piores efeitos do modelo. É o caso do que é conhecido como “climate smart agriculture” (intraduzível, algo como agricultura preocupada com o clima) ou a agricultura de precisão. Em ambos os casos, não se põe em questão o modelo de monoculturas em enormes extensões de terras e aposta-se nas mágicas prometidas pela engenharia genética.

É o que os franceses chamam de “fuite en avant”, ou fuga para adiante. E mesmo estas “soluções” têm pouca adoção pelo agronegócio. Racionaliza-se o uso de fertilizantes químicos, mas não se deixa de depender de uma adubação com data marcada para desaparecer. E o uso de agrotóxicos não para de crescer em todo o mundo.

A solução, demonstrada por inúmeras experiências com um histórico de mais de 80 anos, é a agroecologia. Sua prática vem se ampliando rapidamente nas últimas décadas, com o número de produtores dobrando a cada uma delas e já chegando a dezenas de milhões de camponeses, mas também de milhares de empresários do que já é chamado de agronegócio verde.

Existem várias vertentes sob esta designação de agroecologia, sendo que as mais antigas precedem a adoção deste conceito. Trata-se da agricultura orgânica, com a variante biodinâmica. Nesta versão da agroecologia, entretanto, prevalece uma abordagem mais voltada para a produção de alimentos “limpos” do uso de produtos químicos ou variedades da engenharia genética. A agricultura orgânica se caracteriza mais pelo que ela não pode utilizar para ter seus produtos certificados. Frequentemente, esta produção orgânica mantém um desenho produtivo com monoculturas para permitir a mecanização, o que leva alguns puristas a não a considerar agroecológica. A meu ver, é preciso aceitar que existem mediações entre sistemas que aplicam todos os princípios da agroecologia e os que fazem simplificações de modo a poderem responder a algum tipo de pressão, seja de trabalho, seja de mercado.

Em sistemas agroecológicos mais avançados o desenho produtivo é mais complexo e diversificado e não comporta monoculturas. Estes sistemas provaram, na prática, serem os de melhor performance em termos de produtividade total por área cultivada, mas também mostraram que esta área não pode ser grande. Há uma relação inversa entre a complexidade de um sistema agroecológico e o tamanho da área produtiva. O tamanho e a complexidade implicam um maior uso de mão de obra, mas o limitante principal é a capacidade de gestão do espaço e do tempo de trabalho. A implicação deste fato é a necessidade de se multiplicar o número de produtores de forma gigantesca, invertendo a tendência da agricultura convencional que sempre buscou, desde o advento do capitalismo, diminuir o uso de mão de obra e ampliar a escala das áreas de cultivo.

Se o mundo não estivesse enfrentando uma crise energética crescente, seria impensável pensar em abandonar as imensas fazendas com dezenas de milhares de hectares de monoculturas operados por umas poucas dezenas de motoristas de tratores, cultivadores, colheitadeiras e aplicadores de fertilizantes químicos, agrotóxicos e irrigação. Mas o custo energético do sistema convencional vai exigir o maior emprego de mão de obra, bem como uma radical redistribuição da produção alimentar em todo o mundo, buscando diminuir ao máximo a distância dos consumidores. Antes que se argumente com a substituição dos combustíveis fósseis por energia “verde”, é bom lembrar que há limites importantes para que isto se dê de forma generalizada.

Como já foi dito, sistemas agroecológicos diversificados são operados com maior eficiência por produtores familiares e em pequena escala. E para que se possa produzir alimentos em quantidade e qualidade necessárias para garantir uma dieta adequada a toda a população do planeta, vai ser preciso mais do que uma reforma agrária. Vai ser necessário fazer uma revolução agrária e entregar as terras do agronegócio para centenas de milhões de camponeses. A título de exemplo podemos citar um estudo realizado nos EUA indicando que a adoção generalizada da produção orgânica e garantir a oferta alimentar adequada para toda a população seria necessária uma base de 40 milhões de camponeses. Tal estudo usou produtividades das experiências de produção orgânica nos EUA, mais baixas do que as agroecológicas aqui no Brasil. Mas mesmo com menor performance, a produtividade da agricultura orgânica norte-americana é comparável com a da agricultura convencional em condições climáticas ideais. Em situações de seca, que tendem a ser tornar muito mais frequentes, esta produtividade chega a ser 40% maior.

Estudos encomendados pela FAO mostraram que a agricultura orgânica pode alimentar corretamente uma população de 10 bilhões de pessoas, substituindo totalmente os sistemas convencionais. Haveria mudanças na composição das culturas, com uma diminuição significativa da produção animal, sobretudo de gado bovino e aumento na produção de leguminosas e hortaliças. A quantidade de calorias disponível também cairia, mas mantendo-se acima das necessidades vitais de cada um.

Outros estudos apontam para a possibilidade de se substituir toda a fertilização química de nitrogênio, fósforo e potássio por leguminosas fixadoras do primeiro e compostagem de lodo de esgoto e lixo orgânico para o segundo e terceiro.

Por outro lado, os sistemas agroecológicos permitem a fixação de carbono nos solos, além de favorecerem o reflorestamento, o que tem o mesmo efeito. A redução dos estoques de bovinos teria impactos na diminuição da emissão de N20, um dos mais poderosos GEE. Alguns estudos indicam que, entre o reflorestamento, a redução das emissões do gado bovino e a fixação de carbono nos solos retiraria significativamente o CO2 da atmosfera, além de diminuírem exponencialmente as emissões de N2O.

Não é preciso se estender nos comentários sobre os impactos positivos da agroecologia na eliminação da contaminação química de solos e águas, bem como na maior economia no uso de água na agricultura. Estes resultados são inerentes à agroecologia.

Para completar esta breve análise das implicações da adoção generalizada da agroecologia no lugar da agricultura convencional é preciso indicar que o efeito social seria gigantesco. Transferir milhões de pessoas do universo urbano de volta para o rural vai ser uma imposição desta realidade e, para que isto seja possível, vai ser necessária uma redistribuição da renda para remunerar corretamente uma produção vital, os alimentos e outros produtos agrícolas, assim como o pagamento dos serviços ambientais do novo sistema. Um imposto sobre a emissão de GEE e um bônus pela sua retirada da atmosfera favoreceriam esta redistribuição.

Todas estas mudanças têm implicações para a pesquisa científica, exigindo novas formas de produção do conhecimento. A prática mostra que a extrema diversidade dos sistemas produtivos na agroecologia elimina propostas centradas no monocultivo, marca da atual pesquisa agropecuária. A agroecologia é “knowledge intensive”, enquanto a agricultura convencional é “input and energy intensive”. Vai ser preciso combinar a investigação científica com a experimentação camponesa para que possam ser redesenhados esquemas produtivos específicos para cada produtor. São novos paradigmas para o ensino das ciências agrárias, para a pesquisa e para a extensão rural. Esta nova distribuição do trabalho acontecerá de uma forma ou de outra. Se induzida pela compreensão antecipada da sua necessidade ela enfrentará sobretudo a resistência do agronegócio. Se deixada para quando as crises se agravarem ela vai se fazer em meio a imensas dificuldades oriundas de uma produção cada vez mais insuficiente e todas as perturbações sociais e políticas que não deixarão de se manifestar

Por que o engajamento sócio-político hoje é tão difícil?

Leonardo Boff

Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (USA e Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional, indiscriminada e genocida reação do estado de Israel contra a população  da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de outubro do ano passado.

O stablishment político, dominante no mundo, a partir do Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal  de apoio  à causa  palestina e contra o genocídio que lá está ocorrendo. Nos USA a repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores universitários, até contra uma candidata à presidência do país.

Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua inteira família, dentro de suas próprias casas.

Precisamos  tentar entender o porquê dessa inércia. Aduzo alguns pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação seja face à grave situação concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocídio na Faixa de Gaza.

Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago  se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de “A grande transformação”: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em “A miséria da filosofia”.

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se a ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA(There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais. Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa de elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo:Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral  da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes consciências ingênuas que esse é o mundo bom e desejável. Não se dão conta de que são cooptados pelo sistema imperante e feitos seus reprodutores.

Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a “Pedagogia do Oprimido”, “Educação como prática da Liberdade” e concluindo com a  educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem) mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista mas solidária com um  modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a  humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.

(A reflexão,buscando as alternativas, virá no próximo artigo)

Leonardo Boff publicou Cuidar da Casa Comum:pistas para protelar o fim do mundo, Vozes 2024.