Não basta ser bom, importa ser misericordioso

A Semana Santa nos convida a pensar sobre o sentido maior de nossas vidas à luz daquele que foi radicalmente humano e por isso também divino. Ele não se propôs fundar uma nova religião. Nem pretendeu que as pessoas fossem mais religiosas. Mas o que de fato quis, foi que todos, com a religião ou sem ela, fossem mais humanos, solidários, fraternos, justos, amorosos e misericordiosos.

Para Jesus não bastava ser bom. Tinha que ser misericordioso. Só assim seria plenamente humano. O Deus que anunciava era um Pai bom mas principalmente era um Pai misericordioso. Sentir a dor do outro, abaixar-se até o seu nível e compreender sua vulnerabilidade sem logo julgá-la, constituía a originalidade de sua mensagem.

Ela é atualíssima. Num mundo cruel e sem piedade, onde nações são arrasadas pela voracidade do capital que as mergulha em dívidas, como se faz urgente e necessária esta virtude escandalosa e tão radicalmente humana que é a misericórida.Precisamos trazer de volta a figura do Pai bom mas fundamentalmente misericordioso.

Se há um eclipse da figura do pai na sociedade moderna, há também uma saudade por sua volta, já testemunhada há séculos por Telêmaco, filho de Ulisses, na Odisséia de Homero: “Se aquilo que os mortais mais desejam, pudesse ser conseguido num abrir e fechar de olhos, a primeira coisa que eu quereria, seria a volta do pai”. Curiosamente esta volta é augurada pelo Cristianismo, numa página memorável de São Lucas ao falar da volta do pai ao filho pródigo.

Para compreender esta volta do pai, importa situar a parábola no contexto da prática e da proposta de Jesus. É um dado historicamente assegurado que Jesus circulava entre pessoas de má companhia e que comia com elas. Comer era considerado, para os critérios do tempo, um sinal de amizade. Naturalmente provocava escândalo entre as pessoas piedosas que passavam a criticá-lo.

Por que Jesus assumia um comportamento assim ambíguo? Responder a isso é identificar sua experiência espiritual e sua forma de entender Deus. Jesus experimentou um Deus que é Pai de infinita bondade e que, por isso, assumiu características de mãe: acolhe a todos, a bons e a maus e revela uma misericórdia ilimitada. A forma como Jesus expressa a misericórdia de Deus é ser ele mesmo misericordioso, coerente com o que aconselhava aos outros: “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”. Em razão disso, se misturava às pessoas de má fama para que, em contacto com ele, pudessem sentir a misericórdia divina.

Para facilitar a compreensão dos piedosos que se escandalizavam, narra três parábolas: a da moeda perdida, a da ovelha desgarrada e a mais conhecida de todas, a do filho pródigo. Cada parábola termina com estas palavras consoladoras: “alegrai-vos comigo porque encontrei a ovelha desgarrada, a moeda perdida e porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado”.

Precisamos ser duros de coração e faltos de espiritualidade para não apreciarmos essa experiência de Deus como Pai de misericórdia. Como o amor é incondicional, incondicional é também a misericórdia. Nisso a parábola do filho pródigo é explícita. A novidade não reside no fato de o filho voltar ao pai, depois de haver esbanjado tudo e se encher de remorsos e de saudades. A novidade reside no fato de o pai voltar ao filho: ao vê-lo na curva da estrada, o pai corre-lhe ao encontro, lança-se ao pescoço e cobre-o de beijos. Não lhe cobra nada. Ao contrário, prepara-lhe uma festa.

Com isso Jesus quis deixar claro: Deus é um Pai materno ou uma Mãe paterna que sempre volta para os filhos e filhas, por malévolos que sejam, porque nunca lhe saem do coração.

As Igrejas, diferentes de Jesus, raramente se voltam para as pessoas para que façam uma experiência de misericórdia. Antes, continuam a aterrorizar as consciências com as chamas do inferno. Escolhem o caminho do moralismo, reforçando o medo que mantém cativa a liberdade e torna triste a vida.

Jesus mesmo denuncia essa atitude, presente no filho bom que ficou em casa, à sombra do pai. Ele se nega a voltar para o irmão. Quer a observância da norma e a aplicação do castigo. Esse filho bom é o único a ser criticado por Jesus. Para Jesus não basta sermos bons. Importa sempre voltar para o outro e mostrar amor e misericórdia.

Pai e filho voltam um ao outro: fecha-se o círculo e irrompe então a irradiação da plena humanidade.

36 comentários sobre “Não basta ser bom, importa ser misericordioso

  1. Leonardo Boff tem o dom de compartilhar a misericordia de Deus espalhando a profunda compreensão da Palavra. Obrigada.

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  2. Noto uma grande distância entre a religião como instituição e o cristianismo tal como Jesus ensinava. Demorei 15 anos para decidir renovar meus votos católicos na Crisma, pq não queria me sentir parte de uma instituição que queimava pessoas vivas ou que apoiava um golpe militar. Uma lição de amor e tolerância para mim é a passagem em que Jesus sai em defesa de Maria Madalena, “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Acho inadmissível alguém que se diz cristão ser intolerante, preconceituoso, machista ou moralista. Ainda bem que existem pessoas como Leonardo Boff ou Frei Betto, para lembrar as pessoas de que a mensagem de Cristo é sempre e, incondicionalmente, a do amor, da compaixão e do perdão.

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    • Aline, amiga, não consta que Maria Madalena, discípula de Jesus, portadora primeira da notícia da ressurreição de Jesus, tenha sido ameaçada de apredrejamento. Trata-se de outra mulher. Maria Madalena foi curada de uma doença grave por Jesus (ele expulsou dela 7 demônios como se dizia na época acerca das enfermidades). Essa sua confusão se justifica porque o papa Gregório divulgou isso dessa maneira… No mais estou de acordo contigo.

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      • Claro rogerio. Madlena era um fato à parte.a mulher dito adultera era o simbolismo do machismo ainda perpetuado. Nem adultera era mas seu marido quis em armdilha ao Mestre livrar se dela. Marido socorridopor ela no fim da vida ja leproso em Efeso.abçs

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  3. Magnífico!
    Amor incondicional!
    Jesus Cristo foi um exemplo disto e por isto Jesus Cristo É meu Ídolo!
    Há quem diga que Jesus Cristo nunca existiu historicamente falando-se!
    Alguns afirmam que Jesus Cristo é uma lenda!
    Outros afirmam que é um arquétipo!
    Mas, para mim, tanto faz e pouco importa!
    Importa-me a mensagem que veio através de Jesus Cristo e do Evangelho!
    Seja Jesus Cristo um personagem histórico, uma lenda, um arquétipo, ou o que for…
    Numa comparação, ainda que muito mal feita: algumas pessoas acreditam que o time para o qual torcem, seja mais importante do que o esporte em si! Afinal, parece-me que pouco importa o time para o qual você torce, ou mesmo se torce pra time nenhum! O importante é o esporte em si!
    No jogo da vida, pouco importa de que lado você está! O importante é que respeite A Vida onde quer que ela esteja! E a glorifique através de atitudes éticas, saudáveis, conscientes, visando sempre o bem estar biopsicossocial de todos e todas… Juntamente com a promoção do Bem Comum!!! Lembrando O meu Ídolo, parafraseando-O: “Para que todos e todas tenham Vida, e, a tenham em Plenitude.”

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    • Prezado romero existe realmente duas opiniões a respeito de Jesus e uma delas defende que tudo o que ocorreu foi um imenso teatro ja que ele nao teria possuido um corpo carnal..pouco me importo com esterilidades.o que ninguem pode ignorar mesmo mechido são os principios eticos e morais alem do sopro no vt mostrando no mandamento1 que so o amor eleva a criatura.abçs

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  4. “Êita” Jesus de Nazaré!!! Esse é o “home” uai ! Só “mermo vindi de Deus”, né?

    Abraços Gilson

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  5. Muito obrigado por suas palavras proféticas! Porque só um profeta de verdade pode dizer tais palavras. E só um homem que sabe que é pó aos pés de Deus, compreende tal ensino.
    Paz e graça.

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  6. Sou Pastor Batista e desde a época de seminário suas palavras me inspiram a cuidar do rebanho de Deus.

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  7. Quisiera tanto poder leerlo en español, es eso posible por favor gracias por sus lecciones son un balsamo en esta locura de vida, mil gracias

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  8. Leonardo,

    Bom dia.
    Clique no link em azul e assista o vídeo. Gostaria de saber sua opinião.
    O vídeo é uma palestra ministrada pelo Pastor Ed René sobre o paradoxo da religião.
    Um grande abraço.

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    • Sergio Rodrigo,
      Achei muto boa a homilia do pastor Ed René. Ele passa convencimento e verdade, sem esconder as contradições da vida. A Palavra de Deus não as resolve mas nos dá força para conviver com elas e assim superá-las.
      Ele sabe combinar bem a emoção com a razão, a reflexão com a oração.
      Apenas diria que em vez de insitir tanto num único Deus, deveria assumir mais claramente o modo cristão de falar de Deus que é sempre comunhão de Pessoas Divinas. Nós somos trinitários e não apenas monoteistas como os judeus e muçulmanos. Falar em Deus-comunhão-de-pessoas muda nossa leitura da realdiade.
      Depois abriria mais o horizonte numa perspectiva ecumênica: Deus não nos fez apenas a nós seu povo. Mas todo os povos são povos de Deus e o Espírito sempre esteve presente neles. Porque o Espírito sempre chega antes do pregador cristão.
      Mas acho-o um bom conselheiro e verdadeiro, pois assume as limitações humanas com trnaparencia. E convoca a todos a serem não apenas mais cristãos mas mais humanos,mais fraternos, mais solidarios. Suspeito que esse foi o propósito original de Jesus.
      Leonardo Boff

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  9. Maravilhosa reflexão, amigo Boff. Não quero ser simplesmente visto como o ” homem bom”, especialmente após a morte. Mas peço, humildemente, a Deus que me ajude a imitá-lo, em ser misericordioso…

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  10. Belíssima exposição da misericórdia de DEUS… creio que é isto que ainda nos falta: o entendimento verdadeiro do amor de DEUS por todos os seus filhos, sobretudo aqueles que se perdem mundo afora…!

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  11. “Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vocês o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, que, sendo de condição divina, não se prevaleceu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.”

    Que a graça de Cristo sempre o acompanhe, Boff!

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  12. Oh meu amigo deixei para lê este texto há essa hora isso foi muito bom. Filha de uma portuguesa católica fervorosa durante a páscoa participávamos de todos os rituais da igreja e em casa também. Papai partiu em seguida mamãe o acompanhou. Deixei de ser praticante, mais faltava algo durante a páscoa. Ganhei meu filho. Mais nestes dias o sentimento era enlutado a morte de Jesus e dos meus pais. Ganhei um neto Joaquim e eu sou toda amor. Mas depois de anos de indagações e graças a esta leitura descobri que o amor incondicional que julgará ter perdido, eles voltaram para minha vida. Terei uma páscoa reflexiva sobre um Deus Materno e Paterno com seus filhos banidos na contemporaneidade. Que a luz da face de Cristo ilumine a todos nós. Obrigada e um forte abraço!!

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  13. Paulo Couto Teixeira, Brasília (CAEPE/ESG, turma "Centenário da República") disse:

    Se a paz é fruto da justiça, a justiça é fruto da misericórdia…

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  14. Reblogged this on Em Busca da Origeme comentado:
    Jesus é isso, amor e misericordia. Ele não é um acusador como muitas igrejas pregam, ele não está esperando o momento em que vamos errar e ele vai nos julgar, ele está esperando o momento em que vamos correr pra ele, para o seu amor e sua graça.

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  15. Deixo um comentario geral para quantos escreveram sobre minha reflexão acerca da misericórdia.

    Agradeço a acolhida de todos. Vejo que compreenderam a importância da misericóridia anunciada por Jesus que é um tipo de amor dolorido, que nunca deixa o sofredor sofrer sozinho mas sempre lhe estende uma mão ou lhe oferece um ombro. E a misericórdia vale especialmente para quem se sente perdido, pecador, longe de Deus.Quando ouvimos que Deus apesar disso nos ama e nos perdoa, sentimo-nos aliviados e recuperamos a alegria de viver. Sugiro a leitura do salmo 103 um dos mais belos da Biblia, todo sobre a misericórdia. Ai se diz:”Deus não está sempre nos acuando nem guarda rancor para sempre…porque Ele conhece nossa natureza e se lembra de que somos pó…Sua misericórdia é de sempre para sempre”. Ha coisa mais consoladora do que esta proclamação?
    Boas festas de Páscoa para todos
    Lboff

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