Belo Monte: ‘Um monumento à insanidade’: D. Erwin Kräutler

Teólogo, filósofo, dono de 22 títulos e condecorações concedidos mundo afora por sua luta em favor da Amazônia, dom Erwin Kräutler, 76 anos, despede-se neste domingo, 3 de abril, do posto de bispo da Prelazia do Xingu, no Pará. Sua cruzada contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, iniciada bem antes do primeiro governo Lula, seu ex-aliado, tornou-se conhecida além das fronteiras do Brasil. Em seu lugar, assume o maranhense dom João Muniz Alves, 55 anos. A substituição é acontecimento importante na Igreja. Sua despedida está levando a Altamira, sede do bispado, 11 arcebispos e bispos. Dom Erwin nasceu em Koblach, na Áustria, chegou à região em 1965 e ocupava o posto desde 1981, quando também recebeu a cidadania brasileira. A Prelazia do Xingu é a maior do país, com 15 municípios e 368.086 km² de área, superfície maior que a de 20 estados brasileiros. Ele sai com a guerra contra Belo Monte perdida. Mas, nesta entrevista, dada ao #Colabora depois de celebrar a missa do Domingo de Ramos na Paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Altamira, diz que não se considera frustrado. Acredita que sua luta e a “insanidade” da usina serão exemplos para evitar novas obras iguais na Amazônia.

Há muito que conheço Dom Erwin. Na Áustria, todas as vezes que por lá dei conferências, ele era um nome que estava na boca de todos, quase uma honra nacional devido à sua luta pela salvaguarda da Amazônia, dos povos indígenas, os que melhor sabem tratar a floresta e por sua luta contra a forma como foi construída a hidrelétrica de Belo Monte. Ele é inteligente e realista e sabe que precisamos de energia para acompanharmos o desenvolvimento do país. Mas não de qualquer jeito, sacrificando as populações, o rio Xingú e a floresta. É possível incorporar critérios ecológicos e humanísticos e quem sabe, mesmo, buscar fontes alternativas de energia existententes em abundância em nosso país. Sua luta foi grande e repercutiu no mundo todo. Ganhou no ano passado, o prêmio Nobel Alernativo da Paz do Parlamento sueco. O Papa Francisco confiou-lhe a redação da parte referente à Amazônia e aos indígenas em sua encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum”. Ele não é um perdedor. Mas um vencedor das causas justas. Ao lê-lo parece-me ouvir as palavras de Darcy Ribeiro quando a Sorbonne lhe conferiu o título de doutor honoris causa. Dizia Darcy mais ou menos o seguinte:”todas as causas que animaram minha vida significaram derrotas: por muitos anos convivei com os indígenas, me compromentendo por suas vidas e culturas e fui derrotado; ajudei a fundar a Universidade de Brasilía dentro de um outrto paradigma e fui derrotado; tentei como chefe da Casa Civil no governo de Jão Goutart promover as reformas de base e fui derrotado;depois do exílío criei os CIEPS com uma educação de tempo integral e fui derrotado; fui vice-governador e por fim senador lutando para dar um outro rumo ao Brasil e fui derrotado. Mas uma coisa eu não quero: estar do lado daqueles que me venceram”. Estimo que dom Erwin diria a mesma coisa. No meio da crise política em que estamos metidos, talvez seja recorfortante, ler o testemunho de vida de um homem, de um pastor que soube dar sua vida pela Vida: dos mais abandonados, dos indígenas desprezados, do rio Xingú e da floresta amazônica. Ele seguramente está inscrito no livro dos Justos e do Bons  entre os povos:Lboff

A entrevista é de Marceu Vieira, publicada por #Colabora, 02-04-2016 ou em IHU de 05 de abril de 2016.

Perdida a luta contra Belo Monte, que reflexão o senhor faz?

Para mim, o problema, desde o início, não é que o Brasil precise de energia. Isso é lógico. Ninguém vai questionar isso. O problema é a captação da energia. Será que a única maneira de captar energia é sacrificar um rio do tamanho do Xingu? Porque o que está acontecendo é o sacrifício do meio ambiente, o sacrifício do rio. E, mesmo que o Ibama, naquele tempo, tenha elencado 40 condicionantes, e a Funai, outras 23 (hoje, no total, são 54), elas não foram cumpridas. Quem anda pela cidade sabe perfeitamente o absurdo que aconteceu. O que se construiu foi um monumento à insanidade.

Não ficou nada de positivo?

A cidade mergulhou no caos. Em todos os sentidos. No sentido da saúde, da educação, do transporte, da habitação. O saneamento básico prometido não foi feito. A gente combate o vírus da zika e convive, aqui, com esgoto a céu aberto. Eu lamento profundamente esse desprezo pela nossa região. Eu conheço Altamira há mais de 50 anos. Então, eu conheço, sei o que Altamira era e sei o que é hoje. Claro, precisávamos e precisaremos sempre inovar e melhorar. Mas da maneira como isso foi feito? E a transferência desse povo de seu habitat, do lugar onde morava…

Muitas pessoas viviam em palafitas. Não melhorou neste sentido?

Não é tão simples assim. Eles dizem que fizeram um monte de casas. Casinhas! Não são casas onde o paraense possa viver. A cultura desse povo é muito hospitaleira. A família não é apenas pai e mãe. É a família grande, é o clã. Quem, por exemplo, vive no interior e vem aqui para se tratar, para fazer compras ou para encontrar alguém, logicamente, hospeda-se na casa da filha ou do filho. O vovô ou a vovó que chegam aí, pai, mãe, parente, amigo… Fico estarrecido diante de uma família que mora numa casinha dessas aí, e quando vem papai ou mamãe, a filha e o filho, vão ter de dizer: “Pai, mãe, aqui não tem lugar”. Quer dizer, isso é um golpe!

Um golpe?

A gente fala do golpe no meio ambiente, o golpe no coração da Amazônia. Mas também é um golpe no coração desse povo. Isso nunca foi levado em conta. As decisões foram tomadas alhures, nos gabinetes de Brasília. Nós tivemos sempre o direito de protestar, de fazer manifestações, demonstrações. Porém, o rolo compressor passou por cima da gente.

O senhor sofreu pressões em sua luta contra Belo Monte, ameaças?

Sim. No início, foi terrível.

Que tipo de ameaças?

Até hoje sou acompanhado por proteção policial. Há quase dez anos não posso sair sem essa proteção. Não que eu tenha pedido. Mas o governo decidiu. Havia pessoas que pensavam que eu tinha o poder enorme de frear, de brecar Belo Monte. Então, tinha gente que gritava: “Enquanto esse bispo existir, a hidrelétrica não sai”. Isso é um absurdo. Nunca tive essa influência.

O senhor acha que as ameaças vinham de onde? De fazendeiros que estavam de olho nas indenizações?

Sim. Mas é muito difícil apontar. A Polícia Federal foi atrás. Mas esse consórcio do crime é muito difícil de identificar.

Como chegavam as ameaças?

Por indiretas. Por exemplo, numa procissão, de repente, alguém gritava coisas para mim. Depois, foi por escrito. Mandavam cartas veladas. Faxes anônimos. Uma carta foi deixada na TV da Prelazia. Depois, pela internet. Até marcaram o dia em que… (seria assassinado). Depois, de Santarém (cidade paraense a 544km de Altamira), veio um aviso e até estabeleceram o preço da execução.

O povo de Altamira estava do seu lado ou confiava no desenvolvimento prometido?

Interessante é que a parcela do povo daquele tempo que estava a favor de Belo Monte, defendendo Belo Monte com unhas e dentes, e, ao mesmo tempo, hostilizando o bispo, por ele ser contra, enfim, todo esse povo hoje bate no meu ombro e diz: “O senhor tinha razão”. Então, muita gente reconheceu que eu não estava contra o progresso, mas contra uma qualidade de progresso que não posso aceitar.

O que, para o senhor, seria o progresso?

Progresso, para mim, seria melhor qualidade de vida! Veja aí a qualidade de vida do nosso povo! Se viu, então, já sabe.

O que deve ser feito agora que a usina já está pronta?

A única coisa que devemos fazer é… Tomara que outros projetos programados, como os idealizados lá para o Rio Tapajós, tomara que os responsáveis tenham aprendido com o exemplo daqui.

O senhor sempre teve um canal com a cúpula que fundou o PT. Procurou o governo e pediu para que Belo Monte não saísse?

Sim, estive com Lula duas vezes. Ele estava na Presidência.

Ele foi irredutível?

Não. Praticamente, ele me enganou. Em 19 de março de 2009, estive lá com ele. Eu disse que não queria falar sozinho, queria que o pessoal pudesse se manifestar. Então, ele marcou uma nova audiência para 22 de julho. E fomos daqui com dois ribeirinhos, dois índios, a comadre Melo (Antônia Melo, da ONG Xingu Vivo Para Sempre), dois procuradores da República e o Célio Berman, famoso cientista da USP. Lula me pegou pelo braço e disse textualmente (imitando a voz do ex-presidente): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Não vamos repetir o monumento à insanidade que foi Balbina (hidrelétrica na cidade de Presidente Figueiredo, no Amazonas, inaugurada em 1989, considerada erro histórico por cientistas e técnicos do governo, pela baixa geração de energia, apenas 275MW, em relação à sua área alagada, quatro vezes maior que a de Belo Monte, e às suas graves consequências socioambientais). O Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragem. Belo Monte só vai sair se for do agrado de todo mundo!” Isso seria impossível, mas, em todo caso, ele falou.

O senhor acreditou?

Naquele tempo, ele estava bem animado. Eu pensei que Lula era sério. Mas era uma manobra para se livrar do bispo, o bispo inoportuno que chegou lá e disse o que pensava. No final, ele disse: “O diálogo tem que continuar”.

Continuou?

Eu estive lá em outubro, de novo. Quem estava no gabinete, naquele tempo, ainda era o Gilberto Carvalho. Fiquei uma semana em Brasília. E a cada dia eles telefonavam: “Hoje, não dá, amanhã vai dar…” Até que chegou quinta-feira à noite, e disseram: “Infelizmente, não dá, porque o presidente vai viajar”. Ali, eu notei que era, simplesmente, para se livrar deste homem que sou eu. O diálogo, então, foi para o brejo.

O senhor insistiu depois com Dilma?

Sim. Eu era presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Eu tive lá uma agenda com ela, e um dos pontos era Belo Monte. Ela logo cortou a conversa. Depois, disseram que eu ia falar com Gilberto Carvalho, que ele ia me receber em audiência. Mas, 15 dias antes, num seminário promovido pela CNBB, ele falou bem claro que Belo Monte era inegociável, ia sair de qualquer maneira. Então, pensei: “O que eu vou falar com esse homem?” E não fui. Eles não gostaram. Mas o que eu ia fazer lá? Só para alguém bater fotos e filmar, dizendo que o bispo esteve lá num diálogo que não foi diálogo?

O senhor vai entrar na luta contra a hidrelétrica no Rio Tapajós?

A gente soma, se une a eles. Porque eu não tenho lá a influência que tenho aqui. Eu estive lá num encontro, em 27 de novembro do ano passado, com os índios Munduruku. Penso que a nossa luta, que não foi vitoriosa, talvez tenha reflexo lá, para que não se deixem enganar.

Evitar a usina no Tapajós seria a vitória da resistência a Belo Monte?

Sim. Mas, por outro lado, eu não me sinto frustrado e vencido. Aquilo que fizemos, aquilo que fiz, eu faria tudo de novo. Na função que exerço, na missão que tenho, você não pode lutar por uma causa com a certeza de que será vitorioso. Não é como na economia, em que se analisa o alto custo para depois decidir: O engajamento, para mim, já é uma vitória. Meu Deus, não quero me comparar com ninguém, mas…

Mas?…

Quantas figuras deste mundo se empenharam por uma causa e não conseguiram, mas depois deixaram uma semente? Jesus morreu na cruz e teve, aparentemente, o maior fracasso. Poderiam imaginar que isso iria anular tudo, a sua mensagem. No entanto, a revolução dele segue até hoje. Então, não me sinto frustrado. A gente diz: “Não, agora você vai jogar a toalha, vai pendurar as chuteiras”… Isso nunca me passou pela cabeça.

O senhor chegou a achar que poderia ter um destino igual ao da irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005 aqui no Xingu?

Eu enterrei a Dorothy. São experiências que a gente nunca esquece. Quando se está diante de um caixão, e a pessoa que está lá dentro, quer dizer, o que sobrou dela, enfim, quando ela não morreu de malária, de acidente automobilístico, mas foi morta, é algo que toca profundamente. Uns dias antes ela estava ainda comigo. Conheci outras pessoas que tiveram a mesma sorte, como o Ademir Federicci, o Dema (líder ambientalista da região do Xingu, ex-vereador do PT e líder da luta contra Belo Monte, assassinado em 2001). Dema morreu pela mesma causa, antes da Dorothy.

A Igreja tentou tirar o senhor daqui?

Nunca. A proteção à minha vida foi iniciada em 29 de julho de 2006. Depois de eu ter rezado uma missa aqui nesta igreja, eu fui para casa e, às dez da noite, veio o comandante da PM com dois brutamontes policiais me dizer: “O senhor está sob proteção”. Eu disse: “Não vou aceitar”. Aí, ele me convenceu, dizendo que sabia mais do que eu. E que se acontecesse algo comigo, se apenas me triscassem, a Secretaria Especial de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Presidência da República iria cobrar. A ordem tinha vindo de lá. Mas a PM daqui assumiu. Eu queria me livrar daquilo. Nessa conversa, ele me disse que, se eu quisesse, poderia sair daqui. Eu não quis. Se saísse, faria a vontade daqueles que se opunham a mim.

Como a Igreja reagiu?

A CNBB sempre me apoiou. Até o Papa Bento XVI, na época, disse para que eu ficasse seguro, disse que rezava por mim. Nunca nenhuma autoridade acima de mim disse para eu sair daqui. Nem me aconselhou. Quem aconselhou foi o comandante da PM. Aqui mesmo, hoje, há dois policiais me esperando. São discretos, não usam uniformes, mas estão me esperando.

O senhor já sentiu medo?

Eu tive medo de entrar em depressão. Porque você está acostumado a andar onde quer que seja. De repente, não dá mais um passo sem ser acompanhado. Mas depois passou. A liberdade exterior foi cerceada, porque eu andava livre aqui nesta cidade. Vida social, visitar pessoas, tomar um cafezinho, ir a batizados… Eu celebro, mas à casa das pessoas eu não vou. Teria de ir acompanhado de dois policiais, e isso me deixa constrangido. Nunca mais fiz isso. Mas eu pensei já naquele tempo: “A vida interior não podem me tirar, e eu vou continuar defendendo essa causa, porque estou convicto de que é a minha missão e a minha obrigação”.

 

10 comentários sobre “Belo Monte: ‘Um monumento à insanidade’: D. Erwin Kräutler

  1. “Praticamente, ele me enganou”, se referindo ao então Presidente Lula.

    Entendo perfeitamente o texto e a situação a que foram acometidos os paraenses, pois, como brasileiro e trabalhador de uma Estatal Federal em que fomos recebidos três vezes por, pelo menos, dois ministros da da defesa diferentes e uma Deputada Federal da base de apoio do Governo, em dois mandatos presidenciais, fomos enganados e servimos para ter fotos no site de divulgação da “luta” em defesa dos trabalhadores….

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  2. Fiquei muito emocionada com a entrevista do Bispo D. Erwin, pois sempre me preocupei com esta causa. Que é a Usina de Belo Monte. Mesmo, muito antes de ser construída. Aliás isso acontece desde há muito tempo com outras obras deste porte. Eu não entendo, como este pessoal que é formado em engenharia só pensa em edificações e desenvolvimento tecnológico. Se é que pensam alguma coisa, nesse sentido. Ou melhor às vezes estão preocupados só em executar a obra e obter os seus dividendos. É triste ver como isso acontece, em larga escala em todo o Brasil. Não se preocupam com os direitos humanos. Em preservação ambiental. Não se importam com os povos indígenas que habitam na região. Não têm consciência do estrago que fazem na vida das comunidades, transformando em um caos completo toda a história e vida de um povo. Não ligam para história de vida de cada um. O regionalismo, as características preservadas, toda a estrutura de vida ali desenvolvida por séculos. Não importam com os costumes, a beleza da integração com a natureza que esses povos possuem. Como são insensíveis a isso tudo. Destruiram o que é de mais sagrado para uma população, que são as suas origens e os costumes, a sua história de vida. É como se uma guerra tivesse acontecido ou melhor: tivesse passado um tornado e destruído tudo. Mas, ainda chega ser pior. Esse estrago tem proporções gigantescas. É de uma crueldade tão grande, que não temos nem adjetivos para qualificar. Eu pergunto: Em nome do crescimento, desenvolvimento, justifica essa insanidade? Quanta insensibilidade dos governantes e daqueles que ligados à eles, concordam em dizimar sociedades inteiras, em nome de um ” progresso” ; que não existe. Não se pode e deve buscar alternativas ???? Isso é um absurdo !!! Um dos maiores absurdos que seres “humanos” cometem!!! Uma catástrofe !!!

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  3. Infelizmente, Governos são comprometidos com economia e não com o respeito a vida, e ficamos tristes porque somos traídos, por este fim, p tal desenvolvimento sem respeito a vida.

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  4. Belíssimo texto, grande testemunho de fé e de luta. Oxalá tenhamos coragem e desprendimento para lutarmos por causas como esta, qual o sentido de nossas vidas senão o bem comum.

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  5. Um país de sol e ventos e marés, ainda ficar construindo esses gigantes de hidroelétricas, com choques ambientais megas, é uma estupidez… com esse dinheiro enorme resolveria rapidamente construindo fontes de energias mais limpas e sustentáveis… Mas como o governo é sócio nas corrupções das grandes empreiteiras, isso ainda é viável infelizmente!

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  6. É possível um projeto ser definido como revolucionário e inovador sem integridade? Eu defendo a democracia, sou inteiramente contra o golpe e tenho uma consciência mínima capaz de me proteger de qualquer canto de sereia promovido pelos agentes do caos e do retrocesso. Não me considero contraditório ao ter mais restrições ao Lula, ao PT e à Dilma do que pontos positivos e, mesmo assim, colocar a vontade popular e a defesa das instituições democráticas e do Estado de Direito acima disto. Não vejo contradição. Mas, vejo como um paradoxo. Isto porque, aqueles que foram democraticamente eleitos para implantar um projeto claro e de conhecimento de muitos de seus eleitores, traíram a tudo e a todos em nome de sua permanência no poder. Ao mesmo tempo que lutar por seu mandato é defender a democracia, parte da responsabilidade pelos riscos que hoje a própria democracia corre deve ser atribuído aos próprios atores da esquerda e seus desvios. Mais paradoxal ainda é saber que estes dependem inteiramente de seus companheiros traídos inúmeras vezes pra que sua fragilidade moral não redunde numa imensa (perdoe-me a expressão) cagada política. A má vontade dos que se viram traídos é pra lá de justificada. Ninguém quer ser “geni”. E o cinismo dos que tentam levantar os desiludidos por meio de coação moral, repetindo frases de efeito, poemas de Brecht e outros mimos pra culpabilizar os que foram preteridos da luta política pelos projetos iniciais só desanima ainda mais.
    Dom Erwin disse que temia unicamente a depressão. As razões são óbvias: enfrentar o horror do cerceamento de suas liberdades em nome de uma causa que poderia ser vitoriosa não fosse a traição sofrida, deve fazê-lo sentir-se um lixo. Quantos não foram enganados, desqualificados, ignorados, vítimas de “casas de caboclo” desmoralizantes, enquanto o PT, o Lula e a Dilma lutaram bravamente pela defesa de suas permanências no comandos das instituições,sacrificando no altar do poder boa parte do projeto inicial e aplicando de forma relativa aquilo que parcamente pode ser considerado conquista?
    Mas, deixe estar. A depressão é a resposta da mente ao acossamento do ódio. A maior derrota teria sido descer ao nível dos que nos agridem. Ficamos impotentes, fracos, inseguros. Duvidamos de nossa própria sanidade, de nossas convicções, de nossa dignidade. Mas, em hipótese alguma a mente consciente vê a entrada na roda viva da sujeira que nos atropela, uma opção a ser considerada. A não ser que já não haja mais o verniz hipócrita dos que contam com a atitude magnânima do outro. Se traem agridem, mentem é porque sabem que não receberão na mesma moeda.
    Isto não quer dizer que não terão resposta. Ao contrário. Antevejo uma resposta violenta dos que já não terão mais o que defender, caso ocorra tamanho retrocesso. Chegará o momento, pelo andar da carruagem, que não mais fará sentido obedecer a qualquer princípio ético social evocado pelas instituições. Quando nos agridem sem uma razão plausível, mesmo que mentirosa, não há porque se apegar à civilidade. Um homem não vê sua casa invadida,seus filhos agredidos e não se prontifica a sacrificar-se por eles. A confirmação do golpe jurídico será o sinal verde para não obedecermos mais à nenhuma fator de sublimação ou de coação moral. A injustiça declarada é a confirmação de nossa desumanização perante aqueles que nos infligem sofrimento. Isto é inaceitável. Não é vida. Nestas horas, como disse Florestan Fernandes em relação à escravidão: toda agressão do escravizado se justifica por si.
    Jesus não pregou o martírio, não é mesmo sr. Boff? Vida em abundância. Para todos. Podemos ter que amar também aos nossos inimigos, mas não há nada mais vilipendioso do que um inimigo que exige ser amado por direito e apesar de ser inimigo. O que acha, sr. Boff?
    Meus respeitos.

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  7. Prova-se que existem existências abençoadas, vocacionadas para os pobres e oprimidos. Torna a vida com sentido saber que não são só os maus e suas maldades. SÃO, TAMBÉM OS BONS E SUAS BENIGNIDADES !

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  8. Lindo demais! Pra lá de emocionante, um misto de alegria e tristeza, a vida como ela é. Viva Dom Erwin Kräutler! Viva Darcy Ribeiro!

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  9. Olhando para este testemunho eu renovo a minha fé nas comunidades ecleseais de base e na luta pela justiça e direitos iguais, sempre afirmo que acredito em homens e mulheres que se espelham no Cristo da vida, que lutam para vencer a opressão e a tirania, ainda que esta luta possa custar a sua própria vida.
    Deus abençoe meu irmão Dom Erwin Krautler, a semente jogada no chão com certeza vai dar frutos e o Espírito Santo fará crescer e desenvolver.

    Laudelino da Costa Palmeira

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