ESTRUPADORES:ERA UM, ERAM DOIS, ERAM TRINTA…E TRÊS

Maria Clara Lucchetti Bingemer e professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ e uma profunda conhecedora de questões femininas. Vale ler este artigo-denúncia e de reflexão: Lboff

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Depois do horror… a contabilidade: este só olhou, não estuprou. Aquele só gravou o vídeo, não estuprou. O outro só jogou nas redes sociais, mas não estuprou. Perversa contagem, como perverso é o fato em si. Vários homens – um, dois, trinta e três – que importa o número? Violaram uma mulher, na verdade uma menina de 16 anos. E o Brasil e o mundo olharam estarrecidos a banalização do horror, reduzido a cifras, números, quantidades.

Depois veio o machismo com suas retorcidas ilações. O delegado que interroga impertinente e violentamente a vítima, pergunta se ela tinha o hábito de fazer sexo coletivo. E depois, por whatsApp, declara enfaticamente estar convencido de que não houve estupro, que a vítima não estava dopada, que não foram 33 homens, porque aquilo é letra de um funk etc. etc. Um dos rapazes detidos e interrogados disse que ela “queria safadeza”. Saiu triunfante da delegacia, com os polegares para o alto, cantando vitória.

Foi um dos que só filmaram, só olharam, só divulgaram, só viram… Só foi cúmplice como tantos de nós ao olharmos essas barbaridades divulgadas na mídia e nas redes sociais e permanecemos silentes, ou omissos, ou coniventes. Ou quando rimos de palavras de ordem machistas, sem criticar sua repugnante violência: “Mulher gosta de apanhar.” “Quando você bate numa mulher pode não saber por que está batendo, mas ela sabe por que está apanhando.”

Assim vai crescendo e se consolidando a cultura do estupro. Quando um deputado diz a outra colega deputada que só não a estuprará porque ela não merece. Ou quando um pré-candidato a prefeito é denunciado e conhecido como espancador e nada lhe acontece, sendo que até a esposa o perdoa e defende. São pequenos consentimentos ao mal e à agressão que parecem não ser tão significativos, mas cuja culminância pode e infelizmente deverá culminar no estupro coletivo da adolescente, cujo nome não foi divulgado.

A perversão vem de longe. As sociedades primitivas eram matriarcais. A mulher detinha a superioridade porque possuía o segredo da fonte da vida em seu corpo. Diante deste mistério, o homem temia e tremia. Até o dia em que descobriu que podia vencê-la pela força física. E assim se estende até hoje o complexo de Brucutu, o homem das cavernas das histórias em quadrinhos, que portava permanentemente um tacape e arrastava sua mulher Ula pelo chão, puxando-a pelos cabelos.

Daí para todos os espasmos da violência que passa pelas sociedades tribais com a excisão dos clitóris das meninas, pelo matrimônio infantil onde crianças de oito anos são obrigadas a casar-se com homens de cinquenta, pelas tradições religiosas onde as viúvas devem enterrar-se junto com os maridos, é uma linha reta. O estupro coletivo da adolescente que poderia haver resultado em morte é apenas o ponto álgido desta linha.

Por baixo da ponta deste iceberg estão todos os outros estupros nossos de cada dia. Na maneira desrespeitosa de olhar, de falar, de tratar. No encostar do corpo forçando um contato não desejado. Na necessidade permanente de humilhar, de menosprezar e diminuir. Na política salarial desigual e injusta.

A mulher vem lutando e obtendo algumas vitórias contra todos esses pequenos “estupros” cotidianos. Conseguiu chegar ao espaço público, a postos de chefia, a salários mais ou menos competitivos. Mas quando a questão é seu corpo desejado com instinto animal pelo homem, todo o caminho se esvanece. E o que fica apenas é o triste espetáculo de seres humanos animalizados, brutalizados. E um conflito onde perversamente se tenta culpar a vítima pelo crime indefensável do agressor.

Não importam as circunstâncias de vida da vítima. A agressão sofrida a torna vítima sem discussões. E o abuso e a agressão que sofreu é um mal em si mesmo. Não se pode encontrar atenuantes alegando que ela provocou, ou desejou, ou instigou. Pois então o crime deixa de ser crime quando é fruto de uma provocação? Não, senhores, chamemos as coisas pelos seus nomes. Uma mulher, uma menina foi violentada naquilo que tem de mais sagrado: seu corpo, sua forma de presença no mundo, sua identidade de mulher. Sua sexualidade criada para o amor e o gozo foi profanada ignobilmente.

Deixemos-lhe ao menos o direito de ser aquilo que é: uma vítima que sofreu abuso de estupro coletivo e pede justiça. As duas mulheres que a defendem, uma advogada e uma delegada, vão lutar para que a justiça se faça. Ambas devem saber bem o que é ser mulher em uma sociedade machista.

A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)

10 comentários sobre “ESTRUPADORES:ERA UM, ERAM DOIS, ERAM TRINTA…E TRÊS

  1. Concordo, em parte.
    “Não importam as circunstâncias de vida da vítima”.
    As circunstancias sempre terá o seu valor. Toda a ação acontece dentro de um espaço temporal que possui os seus valores o qual vão validar ou não os nossos comportamentos.

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  2. Muito triste, assustado. Não consigo sintetizar toda a polêmica. A jovem acorda nua, dopada, consegue contar “trinta ou trinta e três” num minúsculo quarto. Alguém filma, põe na internet, cria uma GRANDE NOTÍCIA, Gera manifestações, e ocupa o noticiário, tirando o foco da TRAGÉDIA política em curso.

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  3. Não sei se fui o primeiro a ler este texto. Creio que não. De forma então que me assusta o fato de ser o primeiro a comentá-lo. O silêncio nesse espaço, sempre tão utilizado para discussões e críticas, me parece mais um sintoma, se não consequência, de nossa cultura machista. Nos calamos estarrecidos frente a tamanha brutalidade. E porque? Somos coniventes com o crime? Achamos que o fato não vale o comentário? Não nos solidarizamos com vítima? O silêncio faz tanto mal quanto o fato em si. Os criminosos que participaram desse estupro coletivo só se sentem a vontade para publicar o vídeo do crime bárbaro que praticaram, pois sabem que não serão julgados e incriminados. Contam com a nossa apatia, senão, empatia pelo ocorrido. E sorriem ao sair da delegacia após o depoimento. O machismo machuca! O machismo mata! E faz isso em todos nós como sociedade e como seres humanos. Até quando ficaremos calados diante de crimes como esse? Até quando, com nossa inércia, criaremos campo para que crimes como esse continuem ocorrendo impunemente. Invertendo os papéis entre vítima e algoz? Sinto uma vergonha alheia nesse momento por pertencer a mesma espécie e gênero que os monstros que praticaram esse e tantos outros estupros. Torço para que a delegada que conduz o caso e a advogada que defende a vítima consigam incriminar os culpados, mesmo sabendo que a nossa justiça é falha e que nada apagará as marcas deixadas no corpo e na alma dessa garota.

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  4. Gente, a tragédia já foi demais. Por favor corrijam o título: Estupradores e não estrupadores (sic)!

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  5. LÍNGUA PORTUGUESA E EDUCAÇÃO SEXUAL
    ESTRUPADORES: ERA UM, ERAM DOIS, ERAM TRINTA…E TRÊS
    A Língua Portuguesa e a Educação Sexual no Brasil passam mais desapercebidas que o Aurélio e a Marta.
    No Aurélio ESTUPRO é “Crime de constranger alguém ao coito com violência ou grave ameaça.” A Marta troca mais de lado que o inimigo que mora ao lado. Mas, o Edu Lobo deslizou na maionese ao passar de pai para o filho Bena que “ERA UM, ERA DOIS.. Na minha casa ERAMOS SEIS, mas não saímos a publicar livros, pois o “PAPEL BRANCO E BRILHANTE NÃO VALE NEM UM TOSTÃO. ESCREVE COM TINTA PRETA FICA VALENDO
    UM MILHÃO”. Já dizia o desafio do cordel. Mas, no país da primeira PRESIDENTA e da XUXA escrever XUXU só é percebido pelo meu tio caminhoneiro que há muito já dizia “EU DIRIJO. DEUS GUIA E O GOVERNO DESVIA”. RUBEM ALVES dizia que o GOL é um ESTUPRO, mas esqueceu que para Nietzche as MULHERES NÃO TÊM FUNDO. E o futebol brasileiro fica no fundo do poço. O goleiro está na cadeia por problemas sexuais, a defesa está mais vazada que a dona do bordel, o meio de campo arrombado por outro plantel e o ataque anda mais inofensivo o fálico do menestrel.

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  6. Um texto que contempla a essência… Muito grata.A formação e informação para saber lutar e como encaminhar a luta.

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  7. O texto da teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer é ótimo e oportuno em face à patologia social que vivemos. Todavia, eu gostaria de acrescentar à reflexão duas outras ‘culturas’ que se misturam ao machismo para conformar toda essa medonha ‘cultura do estupro’. Eu estou falando das culturas da violência e do sexismo, criadas e propaladas fartamente por uma programação midiática estúpida e, infelizmente, assimiladas por uma sociedade cada vez mais egoísta e individualista. Com efeito, a despeito de todos as campanhas e argumentos válidos, a despertar uma luta justa e sem trégua, creio que a transformação da mentalidade só mudará, efetivamente, se houver mínimas condições de cidadania para a grande maioria da população.

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