Dom Paulo Evaristo Arns: mestre, intelectual refinado e amigo dos pobres

Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido hoje, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho.

Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de Paris com fama de ser doutor pela Sorbone. No seminário com cerca de 300 estudantes introduziu metodologias pedagógicas novas. Fez-nos conhecer a literature grega e latina, linguas que dominava como dominamos o verenáculo. Fez-nos ler as tragédias de Sófocles e de Eurípedes em grego. Sabíamos tanto grego que até representamos a Antígona em grego. E todos entendiam.

Depois vim a conhecê-lo em Petrópolis como professor dos Padres da Igreja e da história cristã dos dois primeiros séculos. Obrigava-nos a ler os clássicos em suas linguas originais, São Jerônimo, seu preferido, em latim e São João Crisóstomo, em grego.
Quando o visitei há dois anos no convento de religiosas na periferia de São Paulo o encontrei lendo sermões em grego de São João Crisóstomo.

Foi nosso Mestre de estudantes durante todo o tempo da teologia em Petrópolis de 1961-1965. Acompanha com zelo cada um em suas buscas, com um olhar profundo que parecia ir ao fundo da alma. Era alguém que sempre procurou a perfeição. Até entre nós estudantes disputávamos para ver quem encontrava algum defeito em sua vida e atividade. Cantava maravilhosamente o canto gregoriano no estilo de Solemnes, mais suave do que o duro de Beuron que predominava até a chegada dele.

Durante quatro anos o acompanhei na pastoral da periferia. Nas quintas-feiras à tarde, no sábado à tarde e no domingo todo, acompanhei-o na capela do bairro Itamarati em Petrópolis. Visitava casa por casa, especialmente as famílias portuguesas que cultivavam flores e horticutura. Onde chegava logo fundava uma escola. Estimulava os poetas e escritores locais. Depois da missa das 10.00 os reunia na sacristia para ouvir os poemas e os contos que haviam produzido durante a semana. Estimulava intelectualmente a todos a lerem, escreverem e a narrarem para os outros as histórias que liam.

Era um intelectual refinado, conhecedor profundo da literatura francesa. Escreveu 49 livros. Instigava-nos a seguir o exemplo de Paul Claudel que costumava cada dia a escrever pelo menos uma página. Eu segui seu conselho e hoje já passei dos cem livros.
O que sempre me impressinou nele foi seu amor e seu afeto franciscano pelos pobres. Feito bispo auxiliar de São Paulo ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de base e empenhando pessoalmente Paulo Freire. Como era tempo da ditadura, especialmente férrea em São Paulo, logo assumiu a causa dos refugiados vindo do horror das ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile. Sua missão especial foi visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem e defender os direitos humanos violados barbaramente. Correu riscos de vida com ameaças e atentados. Mas como franciscano, sempre mantinha a serenidade como quem está na palma da mão de Deus e não nas garras dos policiais da repressão.

Talvez seu feito maior foi O Projeto Brasil: Nunca Mais desenvolvido por ele, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright com toda uma equipe de pesquisadores. Foram sistematizadas informações de mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar. O livro publicado pela Editora Vozes “Brasil Nunca Mais” teve papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e acelerou a queda da ditadura.

Eu pessoalmente sou-lhe profundamente grato por me ter acompanhado no processo doutrinário movido contra mim pelo ex-Santo Ofício em 1982 em Roma sob a presdência do então Card. Joseph Ratzinger. No diálogo que se seguiu ao meu interrogatório entre o Card. Ratzinger, o Card. Lorscheider, o Card. Arns com a minha participação, ele corajosamente deixou claro ao Card. Ratzinger:”esse documento que o Sr. publicou há uma semana sobre a Teologia da Libertação não corresponde aos fatos que nós bem conhecemos; essa teologia é boa para os fiéis e para as comunidades; o Sr. assumiu a versão dos inimigos desta teologia que são os militares latino-americanos e os grupos conservadores do episcopado, insatisfeitos com as mudanças na pastoral e nos modos de viver a fé que este tipo de teologia implica” E continuous: “cobro do Sr. um novo documento, este positivo, que valide esta forma de fazer teologia a partir do sofrimento dos pobres e em função de sua libertação”. E assim ocorreu, três anos após.

Tudo isso já passou. Fica a memória de um cardeal que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e sofredores deste mundo.

Leonardo Boff é teólogo e foi aluno do Card. Dom Paulo Evaristo Arns.

18 comentários sobre “Dom Paulo Evaristo Arns: mestre, intelectual refinado e amigo dos pobres

  1. […] Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido hoje, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho. Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de…  […]

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  2. Fiquei profundamente emocionado com tuas palavras, Boff. O Dom Paulo é um desses a quem não conseguimos dar adjetivos precisos, dado o tamanho que têm. Lembrei-me mais cedo, e enviei para o teu twitter, que se encontra definitivamente com o sagrado absoluto o dom Paulo num dia em que celebramos o teu (Boff) aniversário conosco! Lembrei-me também que a defesa que ele fez em teu favor, quando do caso envolvendo a linda obra Igreja: Carisma e Poder (que eu li várias vezes, com muito carinho e desejo sempre!), foi uma defesa que nos envolveu a todxs nós. Tu, Boff, estavas lá na cadeira de Galileu, mas estavas em nosso nome, em nome de uma Igreja Carisma! Quando defendeu a ti, D. Paulo defendeu a todxs nós. Parabéns a ti! Dom Paulo, Presente!!!

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  3. Querido Frei, imagino o que está sentindo. A morte de alguém que foi tão importante pra gente nos provoca lembranças. ..no caso tão lindas. Eu às vezes penso que a tristeza que sentimos nessa hora tem muita a ver com a saudade de um tempo que não vai voltar mas que ficou gravado no nosso coração. Gostaria muito de ter sido aluna de D. Evaristo. Imagino que alegria de convívio. Só posso invejar. Tenho o senhor como meu professor e, embora não tenhamos convívio posso dizer que aprendo sempre contigo, lendo seus livros ou simplesmente observando sua postura diante da vida e dos acontecimentos. Olha que sofro contigo. A admiração de um aluno pelo seu professor é umas das coisas mais bonitas dessa vida.

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  4. Que lindo testemunho, Leonardo. Sinto-me triste, também, pela morte de Dom Paulo. Mas, por outro lado, “é morrendo que se vive para a vida eterna”. Que São Francisco acolha no céu esse irmão menor e juntos intercedam por nós e louvem a Deus em seu reino de amor e de paz.

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  5. A partida de D. Paulo é para todos nós, uma perda imensa. Maior ainda quando constatamos que ficamos cada vez mais, sem referências éticas e sem modelos de solidariedade. Resta-nos o consolo de saber que ele, agora, intercede por nós, junto ao Pai.

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  6. Na morte dos amigos refletimos muito mesmo e, respeitosamente, penso que o deveríamos sobre nós mesmos. refiro-me ao papel que nos resta ainda fazermos.Mais precisamente e, de perto, no momento perco, a cada dia , minha mãe. Angustia-me, pois, uma preocupação: a da ressocialização dos presos, cerceados no bem maior: a liberdade. Preocupa-me, pois o deixar acontecer as coisas em nome de uma esquerda que se quer nasceu . Um deixar acontecer a uma classe política inoperante, maléfica ao social- `a sociedade que se chama políticos.Quando aí está o texto Constitucional a acusar que democracia é muito mais que costumam dizer,evidenciando que os taisrepresentantes do povo não o são, ao contrário, sequer sabem a que vieram, donde concluo: não seria melhor entrarmos na era das parcerias?ou passaremos a vida toda esperando uma esquerda longe de um real possível.
    Li seu livro Crise, voltarei a lê-lo quando preciso for.
    Um abraço, Isabel

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    • Isabel, estamos num voo cego e não sabemos para onde vamos. Creio que é por parcerias, todos se ligaando a alum grupo tendo como objetivo reconstruir o pais com equidade,cuidado para os que menos tem (negros e outros) e da Mãe Terra. Isso seria democracia básica, vinda de baixo. Sua sugestão aponta por onde nos poderá vir uma solução. Parabens lboff

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  7. Emblemática esta morte agora, num momento tão sofrido pro nosso povo.
    Como se alguem olhasse e dissesse, basta, esta missao já nao é tua.
    A tua ja foi cumprida.
    Deixa pra outros mostrarem o que têm a dizer.

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