Ressurreição como uma revolução na evolução

Na entrevista a seguir, concedida a João Vitor Santos,por e-mail à IHU On-Line de 27 de março de 2018 Boff a explica que “a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer”. Mas como compreender isso, relegando provas (científicas) concretas? É aí que, segundo o teólogo, a narrativa mítica se inscreve como alternativa. “O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que, no sentido moderno do termo, é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo”, explica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a Modernidade inebria o entendimento pleno do conceito de Ressurreição?
Leonardo Boff – Não vejo que a Modernidade tenha interesse no tema da Ressurreição, não nos autores que conheço. Preocupam-se sim pelo tema da morte. Por outro lado, se tivermos um conceito mais aprofundado do ser humano, aí sim aponta o tema da Ressurreição. Se concedermos que o ser humano é um projeto infinito e devorado por um desejo que não conhece limites, como Aristóteles e Freud reconheceram, aí se coloca a questão: qual é o objeto adequado ao seu impulso infinito e ao obscuro objeto de seu desejo infinito?

Só um infinito sacia nossa sede de infinito, só uma vida que seja eterna faz descansar o desejo. É a famosa experiência agostiniana do “cor inquietum” que somente repousa quando encontra Deus. O sentido da vida é mais vida, é a plenitude da vida. É aquilo que nós cristãos chamamos de Ressurreição.

IHU On-Line – No que consiste o “ressuscitar” segundo a Teologia e a Antropologia?
Leonardo Boff – Ressurreição não pode ser identificada com a reanimação de um cadáver como o de Lázaro que, por fim, acabou morrendo. Ressurreição é a irrupção do “novissimus Adam” de São Paulo (1Cor 15,45). Vale dizer, é a completa realização de todas as virtualidades incontáveis presentes no ser humano. Se ele é um projeto infinito, a Ressurreição representa o momento  em que estas virtualidades chegam a sua plena floração.

IHU On-Line – Quais o limites de se buscar a Ressurreição como um dado histórico? E de que forma a leitura mítica pode ampliar o entendimento acerca da Ressurreição?
Leonardo Boff – Ninguém viu a ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos.

Esse evento não pertence ao mundo do bios, da vida biológica que sempre termina na morte. Por isso os textos judiciosamente falam em Zoé, que significa uma vida eterna. Também não dizem: nós vimos o Senhor, mas Ele deixou-se ver (óphte em grego, que é o medial de oráo ver). A iniciativa parte de Jesus e não dos apóstolos, aos quais permite vê-lo. Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer. Não sem razão que Orígenes , um dos mais geniais teólogos cristãos do norte do Egito no século III, denomina a ressurreição como a autobasileia tou Chritou. Traduzindo: a autorrealização do Reino em Cristo.

Quando as realidades são grandes demais, faltam-nos conceitos e palavras. O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que no sentido moderno do termo (em C.G. Jung e nos antropólogos) é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo. Nessa linha dever-se-ia pensar a ressurreição de Jesus. Antropologicamente ela é fecunda, pois vem ao encontro daquilo que de utópico e infinito discernimos no ser humano.

IHU On-Line – Muitos estudiosos defendem que a Ressurreição do Cristo é a vitória da vida sobre a morte. Como podemos compreender tal perspectiva?
Leonardo Boff – A vida é chamada para a vida e não para a morte, mesmo quando sabemos que vamos morrer um dia. Esse é o anseio fundamental do ser humano, não apenas viver muito, mas, como notava Nietzsche , viver eternamente. Nesse sentido, a Ressurreição representa um tipo de vida tão plena que nela não penetra a morte.

Mas para isso ela precisa se transfigurar, vale dizer, realizar totalmente o ser humano em suas infindáveis possibilidades. Não vivemos para morrer, como diriam os existencialistas. Morremos para ressuscitar. Dom Pedro Casaldáliga o formulou bem: a alternativa crista é: ou vida ou ressurreição.

IHU On-Line – É possível afirmar que o Deus vivo no Cristo só se revela plenamente na Ressurreição? Por quê?
Leonardo Boff – Enquanto estava entre nós, Jesus participava de todo tipo de limitações e até achaques da existência humana. É o que está implícito da encarnação. O autor da Epístola aos Hebreus é bem concreto: “entre súplicas, clamores e lágrimas se dirigiu àquele que o podia salvar da morte… e aprendeu a obedecer por meio dos sofrimentos que teve” (Hbr 5,7-8). Mais adiante diz que ele “é o general da fé” (12,2). A Ressurreição é a ultrapassagem desta situação carnal e passa à situação “espiritual” (do Espírito de vida). Aqui Deus se revela como o Deus que faz de um morto vivo e de um vivo o “novíssimo Adão”. Dá-se a plena revelação do Deus vivo que quer a vida e que no livro da Sabedoria se revela como “o apaixonado amante da vida” (Sb 11,24).

IHU On-Line – No que consiste a ideia de “ressurreição da carne” e de que forma se articula com a perspectiva do túmulo vazio, tão detalhadamente descrito na narrativa de Marcos ?
Leonardo Boff – “Carne”, biblicamente, significa a situação humana frágil, doentia, mortal. Essa situação pela Ressurreição foi totalmente transmutada. Paulo o diz claramente: “semeia-se um corpo vital e ressuscita-se um corpo espiritual” (1 Cor 15,44.). Eu sustento a tese, aceita por muitos, de que as aparições no final do evangelho de Marcos seriam um acréscimo posterior, um pequeno resumo das aparições. O Marcos original não teria nada disso. Termina Jesus dizendo “aos discípulos e a Pedro que Ele (Jesus) os precederá na Galileia. Lá me vereis como vos disse” (Mc 16,7).

Com isso quero dizer: Jesus não se manifestou ainda de forma plena. Todos nós estamos a caminho da Galileia (o termo da história) para então vê-lo face a face. Assim me parece se entende melhor a história humana que apesar da Ressurreição de Cristo na verdade nada mudou, pois campeia a morte e a violência no mundo. Na esperança caminhamos para a Galileia da ressurreição. O próprio Jesus está em processo de ressurreição, pois seus irmãos e irmãs, que somos nós, ainda não ressuscitaram nem o universo que lhe pertence alcançou a sua plenitude. Ele está ainda em fase de cosmogênese. Quando tudo se completar, então, Jesus e sua comunidade terão finalmente ressuscitado . Aqui cabem as palavras de Ernst Bloch : “o gênesis está no fim e não no começo”.

IHU On-Line – O senhor diz que a Ressurreição representa “uma revolução na evolução”. Gostaria que detalhasse essa perspectiva.
Leonardo Boff – A moderna cosmologia unanimemente afirma que o estado do universo não é a estabilidade, mas a mobilidade. Tudo está se expandindo, se complexificando e se autocriando. A evolução permite que as virtualidades latentes dentro do universo conheçam emergências, possam irromper sob as formas mais diferentes. Neste sentido, o universo não está ainda pronto. Ao invés de falar em cosmologia, deveríamos falar em cosmogênese, a lenta e progressiva gênese de todas as coisas.

Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann , que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.

IHU On-Line – De que forma o panenteísmo pode contribuir para o entendimento da Ressurreição no nosso tempo?
Leonardo Boff – A expressão panenteísmo foi criada no século XIX por um teólogo protestante de nome Krause . Ela não tem nada a ver com panteismo.Ele quer dizer aquilo que a teologia antiga e clássica ensinava e ainda ensina com a expressão “pericórese” (a intro e retro relação de tudo com tudo) ou “circumincesio”. Primeiramente era aplicada na relação da criação com o Criador: ambos estão de tal maneira imbricados que um não pode ser entendido sem o outro. Depois, aplicou-se à cristologia e à doutrina trinitária. As três divinas Pessoas estão tão intimamente relacionadas que uma sempre implica a outra e assim eternamente.

Panenteísmo significa, então, que Deus está em tudo e tudo está em Deus, resguardadas as diferenças entre criatura e Criador. Não se trata de panteísmo segundo o qual tudo é indistintamente Deus. O próprio Voltaire mostrou o absurdo filosófico que tal afirmação comporta. O panenteísmo guarda as diferenças, mas revela como ambos estão presentes um no outro e que não podem ser pensados separadamente. Esta compreensão pode gerar uma mística como aquela de Pierre Teilhard de Chardin ou de São Francisco de Assis , que conseguiam ver Deus em todas e em qualquer realidade.

O Cristo cósmico das epístolas de São Paulo e da introdução do evangelho de São João dão-nos a perspectiva do “pleroma”, vale dizer, da universalidade da presença do Ressuscitado em todas as coisas. Célebre é o dito 33 do evangelho apócrifo de São Tomé que grandes nomes da exegese como Joaquim Jeremias e outros lhe conferem grande autoridade, pois parece ter saído da boca do Ressuscitado: “Eu sou a Luz do mundo. Tudo saiu de mim e tudo volta a mim. Rache a lenha e estou dentro dela, levante a pedra e estou debaixo dela. Porque estarei convosco todos os dias até o final dos tempos”. Levantar uma pedra é oneroso e rachar lenha é penoso. Mesmo esses afazeres comuns contêm a presença do Ressuscitado.

IHU On-Line – Como a volta à experiência da Ressurreição do Cristo pode inspirar a humanidade do nosso tempo a superar seus dilemas?
Leonardo Boff – Talvez este pequeno conto da área da ecologia pode responder a esta pergunta e que se encontra no meu livro Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres (p. 307): “Certa feita um velho e santo monge foi visitado em sonho pelo Ressuscitado. Este, o Ressuscitado, o convidou para passearem pelo jardim. O monge acedeu com entusiasmo e cheio de curiosidade. Depois de andarem longo tempo, para frente e para trás pelo caminho do jardim como fazem os monges depois do almoço, ainda hoje, o santo e velho religioso ousou perguntar: ‘Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, dissestes, certa feita, que voltarias um dia com toda a pompa e glória. Está demorando tanto esta sua volta!’ Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Ressuscitado respondeu: ‘meu irmãozinho querido: quando minha presença no universo e na natureza for evidente; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta consciência se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais pensares nisso; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais precisas perguntar com curiosidade, então, meu querido irmão, eu terei retornado com toda a minha pompa e glória”. E mais não se precisa dizer: o Ressuscitado está entre nós apenas nas fímbrias do mistério; quem crer e for sensível perceberá sua presença.■

Fonte: Edição 518 | 27 Março 2018-IHU

Leia mais

“Morrer é penetrar no coração do universo onde todas as teias de relação encontram o seu nó de origem e de sustentação”. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 2-11-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GKwdq1.
Humano assim como Jesus só Deus mesmo. Artigo de Leonardo Boff, publicado nas Notícias do Dia de 20-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GPRRta.
Francisco de Assis. O protótipo ocidental da razão cordial e emocional. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 2-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2prAFle.
Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a ONU produziu um texto desta natureza”. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 18-7-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GJ8c2x.
Os intelectuais que têm algum sentido ético precisam falar sobre a Terra ameaçada. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 16-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2eZz17B.
“Quem vai derrotar o capital será a Terra”. Entrevista com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 3-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2G8LIdu.

 

A nossa ressurreição na morte

O fato maior para o cristianismo não é a cruz de Cristo mas sua ressurreição. Sem a ressurreição Cristo teria ficado no passado, no panteão dos mártires abnegados, sacrificados por uma grande causa, um sonho de um Reino de justiça,de amor incondicional e de total entrega a Deus. Mas nunca reuniria pessoas para celebrarem sua presença viva entre nós. A ressurreição significa exatamente essa presença inefável de toda a realidade de Jesus,chamado por São Paulo como o  “novissimo Adão”, com um corpo transfigurado,  corpo-espiritual, dentro da história humana.

A ressurreição não deve ser vista como a reanimação de um cadáver, como o de Lázaro, mas como a plena realização de todas as possibilidades inerentes à vida humana dado que o ser humano é um projeto infinito, inteiro mas ainda incompleto. A ressurreição representa  a vida do homem de Nazaré, elevado na cruz e depois  introduzida dentro da realidade divina.

Pertence à fé cristã a convicção de que Cristo é o primeiro entre muitos irmãos e irmãs. Todos nós ressuscitaremos em seguimento dele. Mas quando? No fim do mundo que não sabemos quando vem? Ou no fim do mundo pessoal quando cada um de nós deixa este mundo espácio-temporal?

Seguindo a linha de reflexão dos melhores teólogos atuais, sustento a tese de que nós ressuscitamos quando para nós se realiza pessoalmente o fim do mundo, isto é, quando morrermos. Ao morrermos somos transfigurados e ressuscitados.

Esta é seguramente a mensagem mais esperançadora que o cristianismo pode oferecer para a humanidade e para cada pessoa humana. É a sua grandiosa colaboração antropológica. Não vivemos para morrer. Morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor.

Leonardo Boff é teólogo e escreveu “A nossa ressurreição na morte”,Vozes 2005.

Princípios teológicos para um equilíbrio dos gêneros

 

A despeito das contradições internas das fontes judaico-cristãs, acerca do homem e da mulher, bem conhecidas, queremos recolher alguns princípios positivos que reforçam a luta histórica dos homens e das mulheres rumo a umequilíbrio dos gêneros.

a) Igualdade originária entre homem e mulher

Esse princípio é claríssimo na primeira página da Bíblia, no livro do Gênesis: “Deus criou o ser humano a sua imagem, macho e fêmea Ele os criou”(1,27). No segundo Testamento, centrado na figura do Cristo se diz: “ não há homem nem mulher, todos são um em Cristo Jesus”(Gal 3,28).

b) Diferença e reciprocidadeentre homem e mulher

Dentro da igualdade de origem, se instaura a diferença, entendida como abertura um ao outro, vale dizer, comoreciprocidade. O relato mais arcaico do Gênesis (2,18-23), de tendência geral fortemente masculinizante, acentua essa reciprocidade. Eva, embora tirada da costela (lado) de Adão, é apresentada não como a mulher com quem este vai ter filhos, nem como serva da casa, mas com seu vis-à-vis e interlocutora. O modismo hebraico para expressar essa mutualidade vem expresso pelas palavras de Adão: “eis alguém que é osso de meus ossos e carne de minha carne”(Gn 2,24). O próprio Paulo, podia expressar assim a reciprocidade: “o marido cumpra o dever conjugal para com a mulher e, igualmente, a mulher em relação para com o marido”(1Cor 7,4).

c) Homem e mulher, caminhos para Deus

Se homem e mulher são imagem e semelhança de Deus significa que Deus é encontrado neles. Aprofundando o conhecimento do humano, masculino e feminino, surpreendemos Deus cuja natureza apresenta asqualidades positivas dos princípios masculino e feminino.

Em termos rigorosos da teologia, quando dizemos Deus-Pai não dizemos uma coisa diferente do que quando dizemos Deus-Mãe. Por pai e mãe, pretendemos, teologicamente, expressar que a vida e a inteira criação têm sua origem em Deus e que se encontra sempre sob o cuidado e providência amorosa de Deus. Isso pode ser perfeitamente expresso pela categoria pai ou mãe. Portanto, temos sempre um caminho aberto para Deus, pela via do masculino e pela via do feminino. Diminuindo o valor da mulher temos uma imagem distorcida de Deus. Ficando exclusivamente com o homem encontramos não um pai amoroso mas um juiz justiceiro. Destruindo o humano perdemos Deus. Perdendo Deus, perdemos o sentido derradeiro de todas as coisas.

d) Homem e mulher, caminho de Deus

A imagem (ser humano) remete aomodelo (Deus). Se Deus mesmo tem dimensões masculinas e femininas, então é sob essa forma que Ele se revelou e auto-comunicou na história. Emerge como uma Energia criadora primordial, como aquele Pai que acompanha e protege ou como a mãe que cuida e consola (Is 66,13), mãe incapaz de esquecer o filho de suas entranhas (Is 49,15; Sl 25,6; 116,5) e que, no termo da história, como a grande e generosa Magna Mater enxugará nossas lágrimas, cansados de tanto chorar pelos absurdos que não entendemos (Ap 21,4). O feminino e masculino são caminhos de Deus para conosco.

Há ainda uma maneira de nomear Deus no cristianismo que é na forma de Trindade de divinas Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. As Pessoas significam relações de reciprocidade, de comunhão, de mutualidade, de inclusão, numa palavra, de amor. Deus emerge como um jogo de energias originárias e eternas que somente existem na medida em quecoexistem, são uma para a outra, com a outra, pela outra e jamais sem a outra. Nenhuma dela pode ser tomada em si sem as outras. Onde está uma estão simultaneamente as outras. É o que a teologia chama de pericórese, vale dizer, a inter-retro-relação e interpenetração das Pessoas divinas entre si. Não é mais o monoteísmo dos judeus e muçulmanos pré-trinitário. É o monoteísmo trinitário cristão. Ele funda um outro tipo de unidade divina, não dada previamente, mas sempre se construindo pelo jogo das reciprocidades e de inclusões. Por issodizemos que a essência íntima de Deus não é a solidão do Uno mas a comunhão de três Únicos (o único não se soma) que pela relação recíproca, se uni-ficam, ficam um único Deus-amor-relação.

Num nível existencial quando dizemos Trindade, no fundo queremos dizer: o Deus que está acima de nós chamamos de Pai, o Deus que está ao nosso lado chamamos de Filho e o Deus que está dentro de nós chamamos de Espírito Santo. Não são três deuses (porque cada Pessoa é única e por isso não pode ser somada) mas é um e o mesmo Deus que, no nível existencial, assim se revela e assim é experienciado.

Pelo fato de em Deus haver diversidade e unidade, então sua imagem no mundo, o homem e a mulher, serãotambém diversos e unos sendo impossível pensar o feminino sem o masculino e o masculino sem o feminino.

e) Homem e mulher em Deus

Por mais que estejam, inarredavelmente, imbricados um no outro e se busquem, insaciavelmente, o homem e a mulher não encontram a resposta de seu vazio abissal nessa relação recíproca. Neles há um infinito que somente o Infinito de Deus os pode preencher. Ambos, pois, são chamados a se auto-transcender, na direção do Infinito que os pode realmente saciar. Ai repousam e se perdem para dentro do infinito Amor e da radical Ternura. É apátria e o lar da completa identidade e da total realização. O feminino encontrará o Feminino fontal e o masculino o Masculino abissal. Dar-se-á o que todos os mitos narram e todos os místicos testemunham: o esponsal definitivo, o festim eterno e a fusão do amado e da amada no Amado e na Amada transformados, na expressão de S.João da Cruz.

Leonardo Boff é teólogo e escritor.Escreveu O rosto materno de Deus, Vozes 2005.

San José: santo de los sin nombre, de los sin-poder y de los obreros

Junto a los cuatro evangelios (Mateo, Marcos, Lucas y Juan) que representan la inteligencia de la fe, pues son verdaderas teologías acerca de la figura de Jesús, existe una vasta literatura apócrifa (textos no reconocidos oficialmente) que llevan también, entre otros, el nombre de evangelio, como el Evangelio de Pedro, el Evangelio de María Magdalena y la Historia de José, el Carpintero, que vamos a comentar. No han sido aceptados oficialmente porque no se encuadraban en la ortodoxia dominante en los siglos II y III cuando surgió la mayoría de ellos. Obedecen a la lógica del imaginario y llenan el vacío de informaciones de los evangelios, especialmente acerca de la vida oculta de Jesús. Pero han sido de gran importancia para el arte, especialmente en el Renacimiento y en general en la cultura popular. La propia teología hoy, con nuevas hermenéuticas, los valora.

Este apócrifo, La historia de José, el carpintero (edición de Vozes 1990), es rico en informaciones sobre Jesús y José. En realidad se trata de una larga narración que Jesús hace a los apóstoles sobre su padre José. Jesus la inicia así: «Ahora escuchad: voy a narraros la vida de mi padre José, el bendito anciano carpintero».

Y Jesús cuenta que José era un carpintero, viudo, con 6 hijos, cuatro hombres (Santiago, José, Simón y Judas) y dos mujeres (Lisia y Lidia). «Ese José es mi padre según la carne, con quien se unió, como consorte, mi madre María».

Narra la perturbación de José al encontrar a María embarazada sin su participación. Narra también el nacimiento de Jesús en Belén, la huida a Egipto y la vuelta a Galilea. Termina diciendo: «Mi padre José, el anciano bendito, siguió ejerciendo la profesión de carpintero y así con el trabajo de sus manos pudimos mantenernos. Nunca se podrá decir de él que comió su pan sin trabajar».

Referiéndose a sí mismo, Jesús dice: «Yo por mi parte llamaba a María ‘mi madre’ y a José ‘mi padre’. Les obedecía en todo lo que me ordenaban sin permitirme jamás replicarles una palabra. Al contrario, los trataba siempre con gran cariño».

Continuando, Jesús cuenta que José se casó por primera vez cuando tenía 40 años. Estuvo casado 49 años hasta la muerte de la esposa. Tenía entonces por lo tanto 89 años. Estuvo un año viudo. Desde los esponsales con María hasta el nacimiento de Jesús habrían pasado 3 años. José tendría, pues, 93 años. Estuvo casado con María 18 años. Sumando todo, habría muerto con 111 años.

Después, con detalles, narra que su padre «perdió las ganas de comer y de beber; sintió que perdía la habilidad para desempeñar su oficio». Al acercarse la muerte, José se lamenta profiriendo once ayes. En ese momento Jesús entra en el aposento y se revela como gran consolador. Dice: «Salve, José, mi querido padre, anciano bondadoso y bendito». A lo que José responde: «Salve, mil veces, querido hijo. Al oír tu voz, mi alma recobró su tranquilidad». Enseguida, José recuerda momentos de su vida con María y con Jesús; hasta recuerda el hecho de «haberle tirado de la oreja y amonestado: ‘se prudente, hijo mío’» porque en la escuela hacía travesuras y provocaba al rabino.

Jesús entonces les hace esta confidencia: «Cuando mi padre dijo estas palabras, no pude contener las lágrimas y empecé a llorar, viendo que la muerte se iba apoderando de él». «Yo, mis queridos apóstoles, me puse en su cabecera y mi madre a sus pies… durante mucho tiempo tomé sus manos y sus pies. Él me miraba, suplicando que no lo abandonásemos. Puse mi mano sobre su pecho y sentí que su alma ya había subido a su garganta para dejar el cuerpo».

Viendo que la muerte tardaba en llegar, Jesús hizo una oración fuerte al Padre: «Padre mío misericordioso, Padre de la verdad, ojo que ve y oído que escucha, escúchame: Soy tu hijo querido; te pido por mi padre José, obra de tus manos… Sé misericordioso con el alma de mi padre José, cuando vaya a reposar en tus manos, pues ese es el momento en que más necesita de tu misericordia». «Después él exhaló el espíritu y yo le besé; me eché sobre el cuerpo de mi padre José… cerré sus ojos, cerré su boca y me levanté para contemplarlo». José acababa de fallecer.

En el entierro Jesús hace esta otra confidencia a los apóstoles: “no me contuve y me eché sobre su cuerpo y lloré largamente”. Termina haciendo un balance de la vida de su padre José:

“Su vida fue de 111 años. Al cabo de tanto tiempo no tenía ni un solo diente cariado y su vista no se había debilitado. Toda su apariencia era semejante a la de un niño. Nunca sufrió una indisposición física. Trabajó continuamente en su oficio de carpintero hasta el día en que le sobrevino la enfermedad que lo llevaría a la sepultura”.

Al terminar su relato, Jesús deja el siguiente mandato: “Cuando seáis revestidos de mi fuerza y recibáis el Espíritu Paráclito y seáis enviados a predicar el evangelio, predicad también sobre mi querido padre José”. El libro que escribí sobre San José, tras 20 años de investigación, quiere responder a este mandato de Jesús.

A decir verdad, José permaneció casi olvidado por la Iglesia oficial. Pero el pueblo guardó su memoria, poniendo el nombre de José a sus hijos e hijas, a ciudades, calles y escuelas. Él es el símbolo de los sin nombre, de los sin poder, de los obreros y de la Iglesia de los anónimos.

Leonardo Boff es teólogo y escribió el libro San José la personificación del Padre, Dabar,Mexico 2005.