Lucia Helena Issa: carta aberta a Leonardo Boff

                         Carta aberta a Leonardo Boff

 

Lúcia Helena Issa

Jornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro “Quando amanhece na Sicília”. Pós- graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma e embaixadora da Paz por uma organização internacional. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio.

Uma tristeza imensa me impulsiona a fazer a única coisa que consigo fazer em momentos de dor e em todos os outros. Escrever.

 

 

 

 

A imagem permanece tatuada em mim. A imagem de um homem na casa dos 80 anos, cabelos brancos, uma barba longa e branca em um lindo contraste com o vermelho da camisa, sentado diante de um cárcere brasileiro, à espera de um sim que jamais chegou. Á espera de uma permissão formal e burocrática, ou quem sabe apenas de uma atitude humana para que ele pudesse apenas exercer sua humanidade. Para que pudesse abraçar um irmão.

Hoje vivo no Rio e sou uma escritora e jornalista que tem procurado dar voz às refugiadas e que acaba de voltar de um campo de refugiados na fronteira da Síria. Mas quem lhe escreve nesse momento, professor, não é a escritora, mas a menina que um dia fui e ainda sou.

Uma menina que, aos 14 anos de idade e muitas incertezas, leu um livro de Leonardo Boff. Uma menina que, nascida em uma classe social muito privilegiada, sentia não pertencer a sua classe e nem a nenhuma outra, sentia uma imensa culpa por ter vindo ao mundo com todas as chances e oportunidades em um país tão injusto e socialmente desigual como o nosso.

A culpa e a dúvida de que sua formação cristã, herdada de seus pais, pudesse levar a menina a fazer a diferença na vida de pessoas mais pobres a acompanharam por muitos anos.

Foi apenas com a sua obra que a menina que hoje lhe escreve, aprendeu que ela poderia, sim, sendo cristã, , dar voz às mulheres refugiadas, às mulheres agredidas cotidianamente e às crianças que estão sendo dizimadas por guerras promovidas por petróleo e não por democracia.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que é possível acreditar numa teologia mais humana, mais próxima da vida cotidiana, uma teologia que seja filha da esperança e não do medo ou de um Deus responsável apenas por me punir.

A menina que lhe escreve aprendeu que pode lutar pela paz, pelo diálogo entre cristãos e muçulmanos, pelo respeito a todos os grupos religiosos, e pode fazer isso usando o próprio legado de Jesus, a escuta atenta, o cuidado com o outro, o amor pelas diferenças e a luta contra a hipocrisia dos vendilhões do templo, dos gurus que sequestraram o cristianismo em nome de interesses financeiros e poder.

A menina que lhe escreve aprendeu com você, professor, que era possível conciliar minha fé e minha razão questionadora, que por um momento acreditei serem antagônicas. A menina que lhe escreve aprendeu que é possível, usar a ciência, a antropologia e o saber social para denunciar os mecanismos de opressão que ameaçam a vida dos mais pobres, e também para tirar algumas pessoas de nosso convívio de sua imensa indiferença ética e moral em relação aos mais pobres do Brasil.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que. apesar do discurso elitista de alguns padres que povoaram minha infância, a indiferença ou ódio aos pobres jamais foi e jamais será parte do legado de Jesus.

A menina que lhe escreve aprendeu com você a conhecer um Deus amoroso, que se manifesta nas lutas cotidianas, num campo de refugiados ou nas areias da Praia do Recreio e um Cristo cujo rosto eu vejo refletido em meu irmão todos os dias.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que a verdadeira ética cristã, que deve nortear a minha luta, é uma ética libertadora e inclusiva, que se importa com a dimensão do humano e com o futuro do planeta, com os fabricantes de armas , com milhões de refugiados, e não uma ética cristã alheia aos problemas do mundo.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que a hospitalidade ao outro é vital, é cristã e é necessária em tempos de guerras e crises migratórias. A hospitalidade é um dever de todos e um imperativo ético.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que o reconhecimento do outro, o ouvir o outro, o cuidar solidário, a compaixão ( palavra que, em latim, significa sofrer com) são atitudes essenciais para que eu me defina como cristã, o resto é apenas hipocrisia ou uma forma de exercício de dominação social que nada a tem em comum com o cristianismo.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que lutar pelo diálogo entre diferentes grupos religiosos e pela paz, como ela tem feito, jamais seria fácil pois a violência está em nosso país de várias formas. Além da violência interior de cada um, vivemos imersos em um meio social violento, na violência patriarcal, a violência que culpa a mulher pelo estupro sofrido, que pergunta a uma mulher com que roupa ela estava quando foi violentada, na violência policial que mata milhares de jovens negros por ano, na violência bélica que transforma crianças refugiadas muçulmanas em alvos de um genocídio sem fim e na violência de um capitalismo cada vez mais selvagem e mais predador, que parece ter perdido a chance de se transformar em um capitalismo mais humano.

A menina que lhe escreve aprendeu que a espiritualidade é mais importante do que a religião em si. A espiritualidade surge em mim quando sou capaz ver Deus nos pequenos milagres do cotidiano , no amor do outro, na minha filha e nas crianças refugiadas.

A menina que lhe escreve aprendeu com você que a ressurreição acontece todos os dias em nós e que existe um vínculo imenso entre a paixão de Cristo e o sofrimento humano, mas que o sofrimento de Cristo não tem como função legitimar as injustiças ou a opressão, mas pode ter a função de denunciar os mecanismos geradores de sofrimento e nos convidar a lutar.

A menina que lhe escreve, professor, gostaria de lhe contar que esteve em muitos lugares desse mundo em guerra, e descobriu que é nos lugares mais feios que vivem as pessoas mais bonitas.

A menina que lhe escreve gostaria de poder lhe abraçar e lhe dizer que , mesmo depois dos crepúsculos mais longos e das noites mais escuras, o amanhecer costuma voltar e trazer consigo a cor púrpura mais intensa.

Tenho muita esperança de que em breve você e o grande Nobel da Paz Pérez Esquivel irão poder abraçar um amigo. E tenho imensa gratidão, professor, por tudo o que aprendi com você.

 

Crisi brasiliana e dimensione ombra

La crisi brasiliana generalizzata, che ha colpito tutti i settori può essere interpretata usando differenti chiavi di lettura. Finora sono state più frequenti le analisi dal punto di vista sociologico, politico e storico. E’ mia intenzione presentarne una derivata dalle categorie di C.G.Jung insieme alla sua psicologia analitica. E’ chiarificatrice.

Da subito dichiaro che l’ipotesi che l’attuale scenario rappresenti una tragedia, anche se le conseguenze continuano ad essere perverse per la maggioranza dei poveri e per il futuro del paese, con l’approvazione di un tetto per la spesa (PEC55). Più che blocco della spesa significa impossibilità di creare uno Stato Sociale e con questo buttare nella spazzatura il Bene comune che interessa a noi tutti.

La tragedia, come mostrano le tragedie greche, finiscono sempre male. Credo che non sia il caso del Brasile. Io calcolo che siamo al centro di una incommensurabile crisi dei fondamenti della nostra società. La crisi purifica e permette un salto di qualità condizioni di un livello più alto del nostro divenire storico. Usciremo dalla crisi migliori e con la nostra identità più integrata.
Ogni persona e ogni popolo rivelano nella loro storia, tra le altre, due dimensioni: quella dell’ombra e quella della luce. Altri parlano di demens (demente) e sapiens (sapiente) o della forza del positivo e della forza del negativo, dell’ordine del giorno e dell’ordine della notte o pure di thanatos (morte) e di eros (vita) o anche del oppresso e del coscientizzato. Tutte queste dimensioni stanno sempre insieme e coesistono in ciascuno.

La crisi attuale ha fatto apparire le ombre e il represso per secoli nella nostra società. Come osservava Jung il “riconoscimento dell’ombra è indispensabile per qualsiasi tipo di auto realizzazione e, per questo, in generale, si confronta con considerevole resistenza” (Aion&14). L’ombra è un archetipo (immagine orientatrice dell’incosciente collettivo), dei nostri nodi e piaghe e fatti ripugnanti che tentiamo di occultare perché ci causano vergona e addirittura risvegliano il senso di colpa. E il lato “oscuro della forza vitale” che colpisce intere persone e intere nazioni, osserva lo psicologo di Zurigo. (&19).

Cosi esistono macchie e piaghe che costituiscono la nostra copia e la nostra ombra come il genocidio degli indigeni per tutto il tempo della nostra storia fino al giorno d’oggi; la colonizzazioni che ha fatto del Brasile non una nazione ma una grande impresa internazionalizzata di esportazione e che in verità continua fino ai nostri giorni. Mai abbiamo potuto creare un progetto tutto nostro e autonomo perché abbiamo accettato sempre di essere dipendenti oppure siamo stati frenati. quando ha cominciato a formarsi, come negli ultimi governi progressisti, fu subito attaccato, calunniato e chiuso dietro le sbarre da un ennesimo golpe della classe degli arricchiti, discendenti della Casa Grande, golpe sempre nascosto e represso come quello del 1964 e del 2016.

La schiavitù è la nostra ombra più grande, perché per secoli abbiamo trattato milioni di esseri umani strappati a forza dall’Africa, come “ricambi” comprati e venduti. Una volta liberati, mai hanno ricevuto un compenso qualsiasi, né terra né strumenti da lavoro, né casa; loro stanno nelle favelas delle nostre società. Neri e meticci costituiscono la maggioranza del popolo. Come mostrato bene Jessé Souza, il disprezzo e l’odio versati addosso allo schiavo fu stato trasferito ai loro discendenti di oggi.

Il popolo in generale, secondo Darcy Ribeiro e José Honòrio Rodrigo sono quelli che ci hanno dato il meglio nella nostra cultura, la lingua e le arti, ma come Capistrano de Abreu bene sottolineava “il popolo è stato sfruttato e risfruttato ferito e dissanguato”, considerato un buono a nulla, un ignorante e per questo spinto ai margini da dove mai avrebbe dovuto uscire.
Paolo Prado nel suo, “Retrato do Brasil”: saggio sulla tristezza brasiliana, (1928) in forma esagerata ma, in parte vera, annota questa situazione oscura della nostra storia e conclude: “viviamo tristi in una terra luminosa” (in Intérpretes do Brasil, vol.2 p.85). questo mi fa ricordare la frase di Celso Furtado che portò alla tomba senza risposta: “Perché ci sono tanti poveri in un paese cosi ricco?” oggi sappiamo perché: siamo stati sempre dominati da elites che mai hanno creato un progetto Brasile per tutti, ma soltanto per loro e per la loro ricchezza. Come è possibile che sei miliardari abbiano più ricchezza di cento milioni di Brasiliani?

L’attuale crisi è piombata sulla nostra ombra. Abbiamo scoperto che siamo razzisti pieni di pregiudizi, di un livello di ingiustizia sociale da gridare al cielo e ancora non ci è stato possibile rifondare un altro Brasile, sopra altre basi, principi e valori. È da li che si diffondono la rabbia e la violenza che non vengono dalle maggioranze dei poveri. Vengono diffuse dalle elites dominanti, appoggiate dai media che modellano immaginarie dei Brasiliani con le loro telenovelas e disinformazioni. Per Jung “la totalità che noi vogliamo non è una perfezione, bensì un essere completo” (Smarrimento, analisi dei sogni e transfert &452) che integra e non copia, l’ombra in una dimensione maggiore di luce.

E’ quello che desideriamo come uscita dalla crisi attuale: non reprimere l’ombra ma includerla, ormai coscientizzata, nel nostro divenire, superando gli antagonismi e le esclusioni, per vivere insieme nello stesso Brasile che Darcy Ribeiro usava definire: “la più bella e radiosa provincia della terra”.

*Leonardo Boff è filosofo, eco-teologo e ha scritto: Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes 2018).

Traduzione di Romano Baraglia e Lidia Arato

La crisis brasilera y la dimensión de sombra

La crisis brasileira generalizada, que afecta a todos los sectores, puede ser interpretada con diferentes claves de lectura. Hasta ahora han prevalecido las interpretaciones sociológicas, políticas e históricas. Pretendo presentar una derivada de las categorías de C. G. Jung en su psicología analítica pues es iluminadora.

Avanzo ya la hipótesis de que el escenario actual no es una tragedia, por más perversas que sigan siendo las consecuencias para las mayorías pobres y para el futuro del país al establecer un techo de gastos (PEC 55), que es más que la congelación de gastos; significa la imposibilidad de crear un Estado Social y, con esto, tirar a la basura el bien común que incluye a todos.

La tragedia, como lo muestran las tragedias griegas, termina siempre mal. Creo que no es el caso de Brasil. Estimo que estamos en el centro de una inconmensurable crisis de los fundamentos de nuestra sociedad. La crisis acrisola, purifica y permite un salto cualitativo rumbo a un estadio más alto de nuestro devenir histórico. Saldremos de la crisis mejores y con nuestra identidad más integrada.

Cada persona y también los pueblos revelan en su historia, entre otras, dos dimensiones: la de sombra y la de luz. Otros hablan de demens (demente) y sapiens (sapiente) o de la fuerza de lo positivo y la fuerza de lo negativo, del orden del día y del orden de la noche, o de thanatos (muerte) y de eros (vida), o de lo reprimido y lo concientizado. Todas estas dimensiones vienen siempre juntas y coexisten en cada uno.

La crisis actual ha hecho aparecer las sombras y lo reprimido durante siglos en nuestra sociedad. Como observaba Jung «reconocer la sombra es indispensable para cualquier tipo de autorrealización y por eso, en general, se enfrenta a una resistencia considerable» (Aion &14). La sombra es un arquetipo (imagen orientadora del inconsciente colectivo) de nuestras manchas y llagas y hechos repugnantes que procuramos ocultar porque nos dan vergüenza y despiertan culpa. Es el lado «sombrío de la fuerza vital» que alcanza a personas y a naciones enteras, observa el psicólogo de Zúrich (&19).

Así, existen manchas y llagas que constituyen nuestro reprimido y nuestra sombra, como el genocidio indígena en todo tiempo de nuestra historia hasta hoy; la colonización que hizo de Brasil no una nación sino una gran empresa internacionalizada de exportación que, a decir verdad, continúa hasta los días actuales. Nunca pudimos crear un proyecto propio y autónomo porque siempre aceptamos ser dependientes o fuimos refrenados.

Cuando empezó a formarse como en los últimos gobiernos progresistas, fue pronto atacado, calumniado y prohibido por otro golpe de las clases adineradas, descendientes de la Casa Grande, golpe siempre ocultado y reprimido como los de 1964 y 2016.

La esclavitud es nuestra mayor sombra pues durante siglos tratamos a millones de seres humanos traídos a la fuerza de África como “piezas”, compradas y vendidas. Una vez libertos, nunca recibieron compensación alguna, ni tierra, ni instrumentos de trabajo, ni casa; están en las favelas de nuestras ciudades. Negros y mestizos constituyen la mayoría de nuestro pueblo. Como bien lo mostró Jessé Souza, el desprecio y el odio lanzados contra el esclavo ha sido transferidos a sus descendientes de hoy.

El pueblo en general, según Darcy Ribeiro y José Honório Rodrigues, es el que nos ha dado lo mejor de nuestra cultura, la lengua y las artes, pero como bien subrayaba Capistrano de Abreu fue «capado y recapado, sangrado y resangrado», considerado inútil e ignorante y por eso colocado en la marginalidad de donde nunca debería salir.

Paulo Prado en su Retrato de Brasil: ensayo sobre la tristeza brasilera (1928), de forma exagerada pero en parte verdadera, anota esta situación oscura de nuestra historia y concluye: «Vivimos tristes en una tierra radiante» (en Intérpretes de Brasil, vol.2 p.85). Esto me recuerda la frase de Celso Furtado que llevó a la tumba sin respuesta: «¿Por qué hay tantos pobres en un país tan rico?» Hoy sabemos por qué: porque fuimos dominados siempre por elites que jamás tuvieron un proyecto de Brasil para todos, solo para sí y su riqueza. ¿Cómo es posible que 6 multimillonarios tengan más riqueza que 100 millones de brasileros?

La crisis actual ha hecho irrumpir nuestra sombra. Descubrimos que somos racistas, prejuiciosos, de una injusticia social que clama al cielo y que todavía no hemos podido refundar otro Brasil sobre otras bases, principios y valores. De ahí la difusión de la rabia y de la violencia. No vienen de las mayorías pobres. Vienen difundidas por las elites dominantes, apoyadas por medios de comunicación que conforman el imaginario de los brasileros con sus novelas y con desinformación. Para Jung «la totalidad que queremos no es una perfección, pero sí un ser completo» (Ab-reação, análise dos sonhos e transferência & 452) que integra y no reprime la sombra en una dimensión mayor de luz.

Es lo que deseamos como salida de la crisis actual: no reprimir la sombra sino incluirla, concienciada, en nuestro devenir superando los antagonismos y las exclusiones, para vivir juntos en un mismo Brasil que Darcy Ribeiro solía decir que era «la más bella y risueña provincia de la Tierra».

*Leonardo Boff es filósofo, eco-teólogo y ha escrito Brasil: ¿Concluir la refundación o prolongar la dependencia (Vozes 2018).

Traducción de Mª José Gavito Milano

A crise brasileira e a dimensão de sombra

A crise brasileira generalizada, afetando todos os setores, pode ser interpretada por diferentes chaves de leitura. Até agora prevaleceram as interpretações sociológicas, políticas e históricas. Pretendo apresentar uma derivada das categorias de C.G.Jung com sua psicologia analítica pois é esclarecedora.
Avanço já a hipótese de que o atual cenário não representa uma tragédia, por mais perversas que continuam sendo as consequências para as maiorias pobres e para o futuro do país com o estabelecimento do teto de gastos (PEC 55). É mais que o congelamento de gastos, significa a impossibilidade de se criar um Estado Social e com isso jogar no lixo o bem comum que inclui a todos.

A tragédia, como mostram as as tragédias gregas, terminam sempre mal. Creio que não é o caso do Brasil. Estimo que estamos no centro de uma incomensurável crise dos fundamentos de nossa sociedade. A crise acrisola, purifica e permite um salto de qualidade rumo a um patamar mais alto de nosso devir histórico. Sairemos da crise melhores e com nossa identidade mais integrada.
Cada pessoa e também os povos revelam em sua história, entre outras, duas dimensões: a de sombra e a de luz. Outros falam de demens (demente) e sapiens (sapiente) ou da força do positivo e a força do negativo, da ordem do dia e da ordem da noite ou do thanatos (morte) e de eros (vida) ou do reprimido e do conscientizado. Todas estas dimensões sempre vêm juntas e coexistem em cada um.
A atual crise fez aparecer as sombras e o reprimido por séculos em nossa sociedade. Como observava Jung o “reconhecimento da sombra é indispensável para qualquer tipo de autorealização e, por isso, em geral, se confronta com considerável resistência”(Aion &14). A sombra é um arquétipo coletivo (imagem orientadora do insconsciente coletivo) de nossas nódoas e chagas e fatos repugnantes que procuramos ocultar porque nos causam vergonha e até despertam culpa. É o lado “sombrio da força vital”que atinge pessoas e inteiras nações, observa o psicólogo de Zurique.(&19).

Assim existem nódoas e chagas que constituem o nosso recalcado e a nossa sombra como o genocídio indígena em todo tempo de nossa história até hoje; a colonização que fez o Brasil não uma nação mas uma grande empresa internacionalizada de exportação e que, na verdade, continua até os dias atuais. Nunca pudemos criar um projeto próprio e autônomo porque sempre aceitamos ser dependentes ou fomos refreados. Quando começou a se formar, como nos últimos governos progressitas, logo foi atacado, caluniado e barrado por mais um golpe das classes endinheiradas, descendentes da Casa Grande, golpe sempre ocultado e reprimido como o de 1964 e a de 2016.
A escravidão é a nossa maior sombra pois durante séculos tratamos milhões de humanos trazidos à força de Àfrica como “peças”, compradas e vendidas. Uma vez libertos, nunca receberam qualquer compensção, nem terra, nem instrumentos de trabalho,nem casa; eles estão nas favelas das nossas cidades. Negros e mestiços constituem a maioria do povo. Como mostrou bem Jessé Souza, o desprezo e ódio jogado contra o escravo foi transferido aos seus descententes de hoje.

O povo em geral segundo Darcy Ribeiro e José Honório Rodrigo, são os que nos deram o melhor de nossa cultura, a língua e as artes mas, como Capistrano de Abreu bem sublinhava foi “capado e recapado, sangrado e ressangrado”, considerado um jeca-tatu, um ignorante e por isso colocado à margem de onde nunca deveria sair.

Paulo Prado em seu Retrato do Brasil :ensaio sobre a tristeza brasileira,1928) de forma exagerada mas, em parte, verdadeira, anota esta situação obscura de nossa história e conclui:”Vivemos tristes numa terra radiosa”(em Intérpretes do Brasil,vol.2 p.85). Isso me faz lembrar a frase de Celso Furtado que levou ao túmulo sem resposta: “Porque há tantos pobres num país tão rico?” Hoje sabemos: o porquê: fomos sempre dominados por elites que jamais tiveram um projeto Brasil para todos apenas para si e sua riqueza. Como é possível que 6 milhardários tenham mais riqueza que 100 milhões de brasileiros?
A atual crise fez irromper a nossa sombra. Descobrimos que somos racistas, preconceituosos, de uma injustiça social de clamar aos céus e que ainda não nos foi possível refundar um outro Brasil sobre outras bases, princípios e valores. Daí a difusão da raiva e da violência. Ela não vem das maiorias pobres. Vêm difundidas pelas elites dominantes, apoiadas por meios de comunicação que conformam o imaginário dos brasileiros com suas novelas e a desinformação. Para Jung “a totalidade que queremos não é uma perfeição, mas sim um ser completo”(Ab-reação,análise dos sonhos e transferência & 452) que integra e não recalca, a sombra numa dimensão maior de luz. É o que desejamos como saída da atual crise: não reprimir a sombra mas incluí-la, conscientizada, no nosso devir superando os antagonismos e as exclusões, para vivemos juntos no mesmo Brasil que Darcy Ribeiro costumava dizer ser:”a mais bela e ridente provincia da Terra”.

Leonardo Boff é filósofo,eco-teólogo e escreveu Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes 2018)