“No Brasil se planta a árvore pela copa e não pela raiz:Frei Betto

Frei Betto além de religioso,comprometido com a libertação dos  oprimidos pela via da educação humanística e ética tipo Paulo Freire é um grande pedagogo e educador popular, pois vive transitando nesse meio.Acaba de publicar um livro Por uma educação crítica e participativa no qual resume as pautas principais de uma educação contemporânea que incorpora de forma crítica os novos meios de comunicação  e de conhecimento. Vale a pena ler esta entrevista esclarecedora contra distorções sobre gênero, sobre escola sem partido e outras. Lboff

ENTREVISTA DE FREI BETTO AO “O GLOBO” SOBRE SEU NOVO LIVRO, “POR UMA EDUCAÇÃO CRÍTICA E PARTICIPATIVA” (Anfiteatro/Rocco). Publicada no jornal carioca nesta sexta, 12 de outubro de 2018.

1.O senhor tem grande experiência em educação, tanto como teórico como junto a projetos pedagógicos populares, e em “Por uma educação crítica e participativa” o senhor aborda desafios contemporâneos da área. O senhor acredita que, além das deficiências educacionais históricas do Brasil, temos à frente problemas nunca antes enfrentados?

Frei Betto: Temos muitos problemas ainda a serem enfrentados, porque nosso sistema educacional é arcaico, burocrático, e agora agravado por essa proposta deseducativa de “Escola Sem Partido”. Uma das maiores contradições brasileiras é o investimento em cursos superiores superarem largamente o que se faz na pré-escola e no ensino fundamental. Insistimos em plantar a árvore pela copa, e não pela raiz… Os professores são mal pagos, a escola pública está sucateada e, para coroar o bolo com pimenta ardida, o governo ainda congela por 20 anos o investimento em educação. Isso explica o triste fato de, em 2017, entre 4 milhões de redações no Enem apenas 53 merecerem a nota máxima!

2.As novas tecnologias, hoje ferramentas fundamentais para a educação (inclusive a EAD), também trazem riscos de desinformação. Isso se manifestou nestas eleições, em que as chamadas “fake news” superam, em muito, o alcance dos veículos tradicionais. O senhor aborda o tema no livro, abrangendo também a força da mídia televisiva no livro. Como o senhor acredita que a tecnologia digital pode ser usada a serviço da educação?

Frei Betto: Primeiro é preciso equipar as nossas escolas de ferramentas digitais. E ensinar a lidar com elas. Nem sequer a maioria das escolas deu o passo da tradicional interpretação de textos (era literária) para o olhar crítico frente à TV, ao cinema e aos múltiplos recursos da internet (era imagética). O resultado é milhões de pessoas sujeitas à descostura das mensagens digitais, escravizadas pelas algemas virtuais do smartphone, jogando fora um tempo precioso que poderia ser investido no diálogo ou na leitura. E pensam que estão navegando quando, de fato, estão naufragando…

3.Um dos assuntos que o senhor aborda no livro é a questão da Escola sem Partido, que foi um dos temas de campanha de muitos candidatos conservadores, com o apoio de uma grande massa de eleitores. Para o senhor, esta pode ser uma das maiores ameaças à educação e a autonomia dos professores no país? Casos recentes de professores agredidos em sala de aula ou do livro “Meninos sem pátria”, que foi proibido no Santo Agostinho, já demonstram o impacto que este tipo pensamento já causou?

Frei Betto: Na educação não existe neutralidade. Ou se formam pensamento crítico, critérios de discernimento e seleção de valores preferenciais ou o aluno fica sujeito ao que “aprende” das redes digitais e da sedução publicitária. Em vez de cidadão protagonista passa a ser mero receptáculo consumista. Com o risco de ficar refém dos quatro “valores” do mercado: beleza, riqueza, fama e poder. Isso explica por que há uma farmácia em cada esquina, e não uma livraria, um cineclube ou um espaço de criação artística.

4.O senhor destaca no livro a importância de Paulo Freire, apontado como a “raiz da história do poder popular brasileiro”. Apesar de ser reconhecido mundialmente como um dos maiores educadores de todos os tempos, Paulo Freire passou a ser atacado no país por grupos que vêem seu método como uma forma de “doutrinação ideológica”. Corremos o risco de ver as escolas pararem de formar cidadãos ao se tornarem apenas repetidoras de conteúdo?

Frei Betto: Ingênuo quem pensa que a publicidade, o entretenimento, a versão elitista da história não são doutrinação ideológica. O que os que desprezam a obra de Paulo Freire – e a maioria sem jamais ter lido um livro dele – são os que insistem em encarar o mundo pela ótica ideológica dos dominadores, e não dos dominados. Assim, são “educados” na convicção de que negros são intelectualmente inferiores aos brancos; índios, seres primitivos que atrapalham o progresso; mulheres, potenciais objetos eróticos; e homossexuais, meros pervertidos. Não se constrói uma nação com tanta segregação, preconceito e discriminação.

5.O senhor relata muitas experiências bem-sucedidas em educação popular, desde as ações de alfabetização em fábricas, junto ao MST ou em conjunto com as CEBs etc. O senhor acredita que ao longo dos anos houve um afastamento das políticas educacionais junto às bases populares e hoje o país paga esta conta?

Frei Betto: Paga, e caro, pois nas avaliações internacionais o Brasil figura sempre na rabeira comparado a outros países, inclusive da América Latina. No governo Lula, à sombra do Fome Zero, implantamos um amplo sistema de educação popular – cuja história está ainda por ser pesquisada e contata – conhecida por Recid, Rede de Educação Cidadã. Ela abrigava 800 educadores populares profissionalizados e mais 1.000 voluntários, destinados a favorecer a cidadania dos beneficiários das políticas sociais. Isso já não existe, e o resultado é a dependência dos favorecidos aos subsídios do governo, e não pessoas empreendedoras em busca de sua emancipação econômica e social.

6.Outro tema muito debatido atualmente que o senhor aborda no livro é a chamada “ideologia de gênero”. Hoje, defensores do Escola sem Partido tratam qualquer conteúdo que alerte sobre a homofobia e outros preconceitos como “ameaças à família”. Como propor uma educação inclusiva e sem medo de assuntos tabus neste contexto?

Frei Betto: Nossas escolas nem sequer fazem educação sexual, tamanho o tabu. Quando muito, dão aulas de higiene corporal para se evitar doenças sexualmente transmissíveis. Aulas nas quais não se ouvem duas palavras fundamentais: afeto e amor. Resultado: preconceito, gravidez precoce, sexualidade desprovida de sentimentos, promiscuidade etc. Negar a diversidade de gênero equivale a retornar à cosmologia de Ptolomeu e proclamar que é o sol que gira em torno da Terra… Como diria Galileu Galilei, apesar de tudo, a diversidade existe.

7.O senhor também defende uma educação em direitos humanos, que possa ajudar a assegurar os direitos fundamentais que todas as pessoas possuem. Este é outro ponto que vem sendo questionado pelos grupos conservadores, que constantemente relacionam os direitos humanos a “privilégios” ou a “defesa de bandidos”. Como fazer com que a escola volte a defender esta bandeira, que deve estar na base de qualquer sociedade justa e igualitária?

Frei Betto: Uma escola que não trata de direitos humanos, não faz da ética um tema transversal, não educa politicamente (não confundir com partidariamente), está fadada a deformar seres humanos e não a formar. Esse tipo de “educação” é que gera gente como os que, semana passada, entraram na UnB, em Brasília, e rasgaram livros de direitos humanos. Nesse ritmo, como predisse Darcy Ribeiro, vamos ter um país com mais e mais cadeias, que só poderiam ser reduzidas com mais e mais escolas. Não me estranha que, em plena campanha eleitoral, há quem proponha dar a cada cidadão uma arma, e não um lápis ou uma caneta…

8.O livro traz reflexões a partir do quadro educacional do Brasil, que no último relatório da Unesco estava na 88ª posição entre 127 países, ou em penúltimo lugar na lista de 36 nações pesquisadas pela OCDE. De que forma podemos reverter este quadro, num cenário de congelamento de recursos e de redução de investimento em áreas correlatas à educação, como cultura, ciência e tecnologia? Como podemos nos aproximar das nações de ponta se não conseguimos resolver os nossos problemas crônicos na educação?

Frei Betto: Não podemos. A menos os que ousemos promover uma revolução na educação. Perguntando, por exemplo, como o Japão, que é do tamanho do Maranhão, pobre e destroçado pela guerra na década de 1940, em poucos anos se tornou uma potência mundial. Sem educação não há solução. E todos nós somos frutos da educação que recebemos ou da deseducação que nos foi imposta.

9.Em muitos sentidos, inclusive espirituais, o livro defende que “saber educar é saber amar”. Em um momento em que uma polarização política acirra os ânimos, provocando casos de agressões e até homicídios, qual o papel da educação para eliminar a cultura do ódio que se mostra cada dia mais forte?

Frei Betto: O ódio é um veneno que você toma esperando que o outro morra. De que vale uma escola ou uma educação que ignora os temas fundamentais da vida, como amor, solidariedade, altruísmo, perda, fracasso, doença e morte?

 

11 comentários sobre ““No Brasil se planta a árvore pela copa e não pela raiz:Frei Betto

  1. Republicou isso em luveredase comentado:
    Frei Betto: O ódio é um veneno que você toma esperando que o outro morra. De que vale uma escola ou uma educação que ignora os temas fundamentais da vida, como amor, solidariedade, altruísmo, perda, fracasso, doença e morte?

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  2. Frei Beto é 10. Tem visão progressista humanitária valorizando a vida os melhores sentimentos as melhores formas de relacionamento entre seres humanos baseado no respeito na fraternidade na tolerância, colaboração acolhinento afeto,

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  3. A visão de frei Betto sobre educação é equivocada.
    Em particular, métodos de alfabetização como o de Paulo Freire há muito foram abandonados pelos países mais desenvolvidos, de melhores notas no Pisa, conforme apresenta o relatório “GRUPO DE TRABALHO ALFABETIZAÇÃO INFANTIL: OS NOVOS CAMINHOS RELATÓRIO FINAL” disponível em PDF na Internet, com ampla bibliografia sobre o assunto, mostrando que a moderna ciência cognitiva desaconselha métodos como o de Paulo Freire.
    Como bem diz o relatório há “forças, filosofias, ideologias e interesses que sustentam as idéias que predominam no Brasil sobre alfabetização. Os autores não brasileiros já enfrentaram problemas semelhantes em seus países, mas alertam que seria um grave equívoco reduzir a discussão desta questão a um problema ideológico de direita ou esquerda, de política partidária ou de supostos interesses de mesquinhos editores de livros.”
    É dentro desta ótica, isenta destes interesses alheios à área da alfabetização que deve-se discutir o assunto.

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    • Ramses, acho que vc nunca entendeu o método de Paulo Freire, tão importante que a ONU criou um Instituto Paulo Freire. Qual é o sentido ético e espiritual (se confessava católico e trabalhei com ele na revista teológica mais importante em sete linguas Concilium)? Não existe educação neutra. Ela está dentro da sociedade e participa dos debates de idéias e valores que circulam ai. Há que ver quais são os mais humanitários e éticos. Somente que hoje predomina a sociedade mercantil, capitalista que forma os estudantes para serem quadros desta sociedade, bons tecnicos e funcionários, mas alienados das formas como funciona esta sociedade, tão denunciada pelo Papa Francisco e que cria mais da metade da humanidade, de pobres e famintos. Paulo Freire queria e seu método pede isso (os dois livros básicos para vc ler: Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido) Não é para o oprimido. Ao contrário, o estudante não deve copiar o opressor, vomitá-lo fora, pois está introjetado nele, para agir na liberdade e no amor. Sempre dizia, uma educação que não educa para o amor não é educação é instrução. Esses relatóros vêm de gente inserida neste sistema. O que Paulo Freire queria e repetia que devemos aprender a aprender, aprender a pensar, aprender a viver, aprender a conviver e aprender a se espiritualizar. Como vc pode ser contra isso? É isso que as escolas aqui e lá fora ensinam? Vivo dando palestras aqui e fora, até na Alemanha, para educadores. Ficam maravilhados e se dão conta como são domesticados para viverem naquelas sociedades da opulência mas com pouca ou nenhuma solidariedade para com os pobres e oprimidos, as grandes maiorias do mundo. Não seja ingênua e não engule qualquer relatório.Tem que saber, na linha de Paulo Freire, e da teoria crítica de Habermas, Horkheimer, Ricoeur e outros quais interesses se escondem atrás destes relatórios? Ensinam as pessoas a serem livres ou meros membros de uma sociedade mundial perversa e inimiga da vida e da Mãe Terra?Frei Betto é reconhecido como um renomado educador popular no mundo inteiro não só aqui com permanente prática junto a populações pobres e negras.

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      • Sr. Leonardo Boff
        Não encontrei na sua resposta nenhuma citação a alguma obra de natureza científica comparativa que mostrasse a conveniência do método Paulo Freire face a outros. Apenas boas intenções, como a do sr. Paulo Freire, não são suficientes.
        Pôr convicções políticas em alfabetização pode ser tão desastroso quanto, por exemplo, pô-las em genética. Na melhor das intenções, procurando-se exorcizar as investigações em genética humana, acusada de justificar ou conduzir ao racismo, o lysenkoismo atrasou o desenvolvimento dessa área na ex-URSS em mais de vinte anos.
        Por sua vez, mantendo-se fiel à sua fé religiosa, mas sabendo apartar-se dela ao conduzir seus experimentos, o monge agostiniano Mendel teve sua teoria validada até hoje.
        É nesse sentido que deve-se conduzir o tratamento do assunto.
        Admiro seu enfoque holístico, mas seria cientificismo considerar também o emprego da ciência nele?
        Teorias e práticas como a de Paulo Freire foram “moda” no passado, mas foram contraditadas por experimentos científicos como os citados no relatório de que lhe falei e espero seja lido por V. Sa.. No capítulo “EXECUÇÃO PRÁTICA” do livro “Educação como prática da liberdade” vê-se bem a visão de cima para baixo (top-down) do sistema Paulo Freire (método analítico) que ficou provado, por inúmeros experimentos até agora, ser nítidamente inferior aos métodos sintéticos.
        Repetindo o que disse antes:
        É dentro desta ótica, isenta destes interesses alheios à área da alfabetização que acho que deve-se discutir o assunto. O resto é fumaça para encobrir o que todos queremos: a melhor alfabetização de nossos filhos.
        Abraços

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      • Ramses vc e outros não entendeeram o essencial de Paulo Freire: nunca partir de cima, de doutrina e coisas sabendas, mas sempre de baixo, do nível de consciência do povo, das palavras-geradoras. Acho que a ONU não se enganou quando criou e subsiste até hoje o Instituto Paulo Freire especialmente para os países que estão saindo do colonialismo, pois tem o colonizador/opressor internalizado. Nós e outros países que fomos colonizados herdamos uma profunda desigualdade social, injustiça, exclusão dos negros e índios, as minorias políticas que são maiorias numéricas. Sempre desconfio dos textos que vem do Norte, onde eu mesmo me formei (Alemanha e onde lecionei por duas vezes)que elaboram as teorias ocultando o que fizeram de maldadaes pelo mundo afora e, o pior,nem se dão conta disso. Sobre isso fiz um debate-seminário com os professores de sociologia e política em Heidelberg mostrando como seu saber é funcional ao sistema de dominação. Vários começaram a se dar conta desta ocultação ideológtica e vieram me agradecer.Estude um pouco Habermas e seu Livro Conhecimento e Interesse (Erkenntnis und Interesse) que já está em portugues e verá que ele diz o mesmo que Paulo Freirei e eu. Aliás Paulo Freire,eu e Habermas por vários anos trabalhamos juntos no encontro anual de 25 notáveis do mundo inteiro para preparar a revista Concilium (teologia e ciências) que se publica 7 linguas e no Brasil pela Vozes.Lboff

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  4. Republicou isso em Paulosisinno's Bloge comentado:
    Mais um artigo de grande relevância, compartilhado da página do Leonardo Boff, com sua introdução: ““No Brasil se planta a árvore pela copa e não pela raiz. – Frei Betto
    12/10/2018”
    Frei Betto, além de religioso, comprometido com a libertação dos oprimidos pela via da educação humanística e ética, tipo Paulo Freire, é um grande pedagogo e educador popular, pois vive transitando nesse meio. Acaba de publicar um livro: “Por uma educação crítica e participativa”, no qual resume as pautas principais de uma educação contemporânea que incorpora de forma crítica os novos meios de comunicação e de conhecimento. Vale a pena ler esta entrevista esclarecedora contra distorções sobre gênero, sobre escola sem partido e outras. – L. Boff

    ENTREVISTA DE FREI BETTO AO “O GLOBO” SOBRE SEU NOVO LIVRO, “POR UMA EDUCAÇÃO CRÍTICA E PARTICIPATIVA” (Anfiteatro/Rocco).
    Publicada no jornal carioca nesta sexta, 12 de outubro de 2018.

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