Do Quinto Evangelho: proclamação do Cristo do Corcovado

Na quarta-feira, dia 12 de outubro, o Cristo do Corcovado, símbolo do Rio, celebra 80 anos de sua construção. Foi a ocasião para elaborar o seguinte texto:

Naqueles dias, ao se completarem 80 anos de existência, o Cristo do Corcovado estremeceu e se reanimou. O que era cimento e pedra se fez carne e sangue. Estendendo os braços, como quem quer abraçar o mundo, abriu a boca, falou e disse:

“Bem-aventurados sois todos vós, pobres, famintos, doentes e caídos em tantos caminhos sem um bom samaritano para vos socorrer. O Pai que é também Mãe de bondade vos tem em seu coração e vos promete que sereis os primeiros herdeiros do Reino de justiça e de paz.

Ai de vós, donos do poder, que há quinhentos anos sugais o sangue dos trabalhadores, reduzindo-os a combustível barato para vossas máquinas de produzir riqueza iníqua. Não serei eu a vos julgar, mas as vitimas que fizestes atrás das quais eu mesmo me escondia e sofria.

Bem-aventurados sois vós, indígenas de tantas etnias, habitantes primeiros destas terras ridentes, vivendo na inocência da vida em comunhão com a natureza. Fostes quase exterminados. Mas agora estais ressuscitando com vossas religiões e culturas dando testemunho da presença do Espírito Criador que nunca vos abandonou.

Ai daqueles que vos subjugaram, vos mataram pela espada e pela cruz, negaram-vos a humanidade, satanizaram vossos cultos, roubaram-vos as terras e ridicularizaram a sabedoria de vossos pagés.

Bem-aventurados e mais uma vez bem-aventurados sois vós, meus irmãos e irmãs negros,violentamente trazidos de Africa para serem vendidos com peças no mercado, feitos carvão para ser consumido nos engenhos, sempre acossados e morrendo antes do tempo.

Ai daqueles que vos desumanizaram. A justiça clama aos céus até o dia do juízo final. Maldita a senzala, maldito o pelourinho, maldita a chibata, maldito o grilhão, maldito o navio-negreiro. Bendito o quilombo, advento de um mundo de libertos e de uma fraternidade sem distinções.

Bem-aventurados os que lutam por terra no campo e na cidade, terra para morar e para trabalhar e tirar do chão o alimento para si, para os outros e para as fomes do mundo inteiro.

Maldito o latifúndio improdutivo que expulsa posseiros e que assassina quem ocupa para ter onde morar, trabalhar e ganhar o pão para seus filhos e filhas. Em verdade vos digo: chegará o dia em que sereis espoliados. E a pouca terra da campa será pesada sobre vossas sepulturas.

Bem-aventuradas sois vós, mulheres do povo, que resististes contra a opressão milenar, que conquistastes espaços de participação e de liberdade e que estais lutando por uma sociedade que não se define pelo gênero, sociedade na qual homens e mulheres, juntos, diferentes, recíprocos e iguais inaugurareis uma aliança perene de partilha, de amor e de corresponsabilidade.

Benditos sois vós, milhões de menores carentes e largados nas ruas, vitimas de uma sociedade de exclusão e que perdeu a ternura pela vida inocente. Meu Pai, como uma grande Mãe, enxugará vossas lágrimas, vos apertará contra o seu peito porque sois seus filhos e filhas mais queridos.

Felizes os pastores que servem, humildemente, o povo no meio do povo, com o povo e para o povo. Ai daqueles que trajem vestes vistosas, se envaidecem nas televisões, usam símbolos sagrados de poder, exaltam o Pai Nosso e esquecem o Pão Nosso. Quantos não usam o cajado contra as ovelhas ao invés de contra os lobos. Não os reconheço e não testemunharei em favor deles quando aparecerem diante do meu Pai.

Bem-aventuradas as comunidades eclesiais de base, os movimentos sociais por terra, por teto, por educação, por saúde e por segurança. Felizes deles que, sem precisar falar de mim, assumem a mesma causa pela qual vivi, fui perseguido e executado na cruz. Mas ressurgi para continuar a insurreição contra um mundo que dá mais valor aos bens materiais que à vida, que privilegia a acumulação privada à participação solidária e que prefere dar os alimentos aos cães que aos famintos.

Bem-aventurados os que sonham com um mundo novo possível e necessário no qual todos possam caber, a natureza incluída. Felizes são aqueles que amam a Mãe Terra como sua própria mãe, respeitam seus ritmos, dão-lhe paz para que possa refazer seus nutrientes e continuar a produzir tudo o que precisamos para viver.

Bem-aventurados os que não desistem,mas resistem e insistem que o mundo pode ser diferente e será, mundo onde a poesia anda junto com o trabalho, a musica se junta às máquinas e todos se reconhecerão como irmãos e irmãs, habitando a única Casa Comum que temos, este belo e irradiante pequeno planeta Terra.

Em verdade, em verdade vos digo: felizes sois vós porque sois todos filhos e filhas da alegria pois estais na palma da mão de Deus. Amém”.

18 comentários sobre “Do Quinto Evangelho: proclamação do Cristo do Corcovado

  1. Mestre L. B.
    Quanta beleza e profundidade. És tu um afortunado e abençoado pelas graças de Deus. Esse texto foi soprado aos teus ouvidos pelo próprio Cristo.
    Com a sua vênia vou compartilha-lo com os amigos via e-mail e pedir que estes também o repassem igualmente a outros. Tamanha beleza não pode ficar restrita somente à alguns (nós) privilegiados.
    Toda paz e bem!

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  2. Admiro de longa data o trabalho do senhor e vejo que as vezes dá uma impressão de que a busca por uma sociedade mais justa parece ser uma guerra já perdida. O modo como as coisas estão organizadas impõem que exista uma multidão de mutilados seja econômica, social ou culturalmente. As pessoas acabam não se chocando mais[acostumam com a ordenação imposta] com pobreza, o latifúndio improdutivo, a falta de respeito das lideranças políticas e religiosas, os serviços públicos precários, etc. Enfim o tal “o reino de justiça e de Paz” que o senhor colocou no texto, ainda pode ser considerado uma utopia. Eu, como tantos outros jovens desse país continuarei sonhando e trabalhando para que essa utopia um dia possa ser realidade.

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  3. Caro “Frei”, fico emocionado com todo tipo de esperança que é lançada em meu caminho, sonhos de liberdade, sonhos de Vida mais humana e dígna. Tudo que passamos hoje em questão das dificuldades da vida, principalmente a espiritual se deve a esse sistema capitalista, onde se faz ser uma escravocrácia. Onde a grande maioria trabalha a troco de comida, como bestas de carga levando riquezas para outros guardarem.

    Mais há sempre esperança… sempre acredito pois minha fé no Eterno ê inabalável.

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  4. Texto muito lindo meu pastor!
    Sou um dos desleixados admiradores que se maravilha com as palavras de vida eterna que sempre fluem da parte de Deus para sua mente. Em todas as comunidades de fé aonde chego tenho a honra de continuar esses mesmos ensinamentos bioéticos. Tenho grande amor por tudo que ensina para transformar e dignificar o ser humano e o mundo. E por fim agradeço a Deus por tudo que o Senhor meu pastor e professor que nunca vi, mas admiro desde as primeiras palavras até as ultimas que tenho acesso, admiro por renuncia, pois é evidente que de muito já abdicou em sua caminhada. Sou pastoreado por seus pensamentos escritos e pelos áudios das palestras que encontro na internet. Sou Citador apaixonado de frases suas, frases essas que para mim nem se quer lhe pertencem, pois não podem pertencer a um homem, mas sim a tudo que se entende por humanidade. Palavras de um ideal de humano, humano que sempre tem a sua mordomia voltada para o outro natural e seu ambiente primário. Oro com meus credos pela sua paz e vida que a mim tanto vivifica, seu fôlego é para mim motivação de gratidão a Deus.

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    • Pois, Raul, eu estive hoje no seminário de Arroio do Meio! Não nos conhecemos, mas esta simples menção àquele lugar e naquele município onde nasci em 1953 e onde fiz meu Ginásio entre 1966 e 1969, já nos aproxima, sem falar do Leonardo, de quem sou companheiro em tantas coisas teológicas.

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  5. Que alegria, querido “Frei”, taí uma Boa Nova, que a muito precisávamos ouvir!!!
    Nisto consiste a “perfeita alegria”!!!
    Paz e Bem!!!
    Marinilson.

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  6. Olá caro Mestre LB, por acaso o sr já não tinha publicado essa bela e profunda reflexão?
    Caso não, me desculpe peço q desconsidere…

    Inspira esperança, pois ainda resta vozes no deserto!

    Abraço Fraterno a todos!

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  7. Caro Leonardo,
    Eu li este texto (talvez um pouco diferente, não lembro direito) há alguns anos, acho que numa revista, fiz uma cópia pois achei o texto muito emocionante e grandioso como o “Cristo do Corcovado”. Busquei em outros momentos este texto para tê-lo completo, mas nunca mais achei.
    Agora voltou… com força… que bênção.
    Muito obrigada!
    Abraços de Paz e Bem.
    Lúcia Inês – Curitiba – PR

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  8. GOSTEI MUITO DESSE RELATO, INCLUSIVE, DA FORMA COMO OUVIU A ESTÁTUA FALAR E, VEJA QUE FALOU MUITO BEM. SABEMOS QUE É IMPOSSÍVEL EDIFICAR UM PRÉDIO SEM O APOIO DOS PILARES FINCADOS NA TERRA, MAIS, O TRATAMENTO E O CUIDADO DESSES PILARES SE FAZEM NECESSÁRIO QUE SEJA NO MÍNIMO IGUAL AO RESTANTE DA ESTRUTURA DO CONTRÁRIO, OS PILARES ENFRAQUECIDOS, CORROÍDOS, DISTRUÍDOS, A QUALQUER MOMENTO, SEM UM AVISO PRÉVIO PODE ROMPER E E ARRASTAR CONSIGO TODA A ESTRUTURA SOBRE ELES EDIFICADOS.
    DEUS te abençoe e continui te iluminando.

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  9. Querido,
    De coração a coração. Do coração de Deus e do coração da terra. Feliz de termos você entre nós, Que Deus Pai/Mãe continue lhe inspirando e nos ajudando a respirar.

    Abraço,

    Zezito de Oliveira

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  10. Frei Leonardo Boff, eu sinto estas palavras vivas batendo na minha porta todos os dias.
    Mas, às vezes, precisamos ouvi-las (lê-las) para ter certeza que trata-se de um sonho coletivo, implantado no nosso imaginário coletivo, por Aquele que nos ama.

    Bem aventurado o Profeta Frei Leonardo Boff que professa as palavras sábias do senhor e, sobretudo, transforma oração em ação.

    Bem aventurado aquele que serve, celebrando a hierarquia pregada pelo Cristo: a hierarquia no serviço.

    Um abraço forte.

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  11. Esta refexão amplia a nossa visão sobre este maravilhoso Brasil, de habitantes felizes mas, quando exercem algum tipo de poder, economico, politico ou eclesial, se transformam pois carregam ainda uma herança de tantas injustiças e preconceitos.

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