Canto triste de lamentação: homenagem à Taís Araújo

A Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa, que celebra a crucificação de Jesus, coloca em sua boca estas palavras pungentes:

”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito e com maná de alimentei. Preparei-te bela terrra, e tu, a cruz para o teu rei”.

A paixão de Cristo continua na paixão do povo afrodescendente, na discriminação como foi sofrida pela atriz Taís Araújo. Falta a segunda abolição, da miséria, da fome do desemprego e da discriminação.

Em solidariedade à atriz Taís Araújo publico este pequeno poema-reflexão, imitando a liturgia da sexta-feira santa, como solidariedade contra a discriminação de que foi vítima. Penso que ela foi discriminada não só por sua negritude, mas por ser uma excelente artista e de singular beleza. Há nisso tudo também inveja e sentimentos menores em muitas pessoas. Aqui vai meu texto no qual se faz ouvir o lamento triste dos afrodescendentes, como forma de solidariedade à Taís Araújo.

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“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.

Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome, da discriminação e da opressão.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.

Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, “peça”, escravo e escrava. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. Ajudei a construir quase tudo o que existe neste país, monumentos, palácios e igrejas coloniais. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, negras, mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza e a discriminação continuem como realidades cotidianas e efetivas.

Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre sou preterido em favor de um branco. Porque sou negro ou negra.

E quando se pensaram políticas públicas para reparar a infâmia histórica, permitindo-me o que sempre me negaste: estudar e me formar nas universidades e nas escolas técnicas e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez justiça e nos abriu as portas das universidades e das escolas técnicas.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”

“Responde-me, por favor”.

E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afro-descendentes, somar forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo no campo, pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas.

Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas podemos responder às discriminações com o AMOR como o fez Taís Araújo. E vamos um dia, que só Deus saberá, poderemos dizer todos juntos, como no Apocalipse, sem vingança e rancor:”Tudo isso passou”.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo, colunista do JB on line e escritor.

 

11 comentários sobre “Canto triste de lamentação: homenagem à Taís Araújo

  1. Republicou isso em luveredase comentado:
    Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas podemos responder às discriminações com o AMOR como o fez Taís Araújo. E vamos um dia, que só Deus saberá, poderemos dizer todos juntos, como no Apocalipse, sem vingança e rancor:”Tudo isso passou”.

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  2. Profundo. Consistente. Ótimo. Constatar a verdade. Criticar no sentido de analisar e construir um novo mundo interior. A reflexão em comento também se aplica ao querido e estimado Lula. O mantra “meu irmão paulistano brasileiro, minha irmã paulistana brasileira, meu POVO brasileiro: que te fiz eu e em que te contristei ? Responde-me.

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  3. Meu querido irmão franciscano de quatro costados, que a beleza em tom de lamento deste maravilhoso texto chegue aos ouvidos dos brancos de almas desbotadas e insensíveis. Neste nosso país, não há como negar a miscigenação, mas os nossos olhos “obscurecidos pela ignorância” não nos deixam ver a negritude das nossas almas – brancos de alma negra – esquecidos que somos da nossa origem e desse patrimônio fenomenal da cultura afro.Que São Francisco e Santa Clara orem por nós. Um abraço desta pequenina franciscana anglicana, Revda. Arlinda Pereira.

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  4. Parabéns pelo texto! Sempre com palavras belas, doces e que nos deixam rodeados de mais amor, carinho e solidariedade para com todos os nossos irmãos.

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  5. Do meu ponto de vista não há um traço de racismo, nos comentários deprimentes que as pessoas fizeram a Taís Araújo. Estão escondidos sob a ignorância,a estupidez, a inveja, o ódio, o mal estar,o rancor, por que em sendo ela negra, conseguiu o que a grande maioria das brancas não atingiu e nem atingirá: Taís é linda, tem a pele que creme algum consegue dar e cabelos cacheados que nos anos 30, as brancas passavam horas em bigudis elétricos para conseguir. A cintura de Taís é diretamente proporcional aos seus quadris, o que indica ser potencialmente mãe de muitos filhos e a graça e molejo com que anda, chama atenção de qualquer pessoa na rua. Os exemplos de mulher brasileira fruto da mistura das raças, resultou em Taís Araújo, Camila Pitanga e tantas outras que enchem os olhos de harmonia e encanto, que não só nós, mas o mundo não cansa de admirar. Espero que elas não se deixem machucar por pessoas que não têm educação, nem cultura. Que, coitadas, cultivam seu fracasso à luz da inveja dos que já chegaram ao topo em termos de fortuna, sucesso, status e poder. O que está me espantando é que o RACISMO é considerado crime, por lei, e até agora nunca vi qualquer racista ser enquadrado, mesmo publicando insultos horríveis nas páginas das redes sociais. Misóginos (homens que odeiam mulheres), parafílicos (antigos pedófilos), homofóbicos (ódio aos gays), exaltação do Estado Islâmico -EI, nazistas, fascistas, publicam com toda liberdade sua simpatia a tudo que é ilegal e…não acontece nada! Esse silêncio é proposital ou nada se faz porque eles são maiores do que nós? Dolorosa interrogação.

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  6. Muito lindo. De profunda sensibilidade. Por mais que se fale coisas belas, ainda assim
    não estaremos livres de todo preconceito. Seja qual for. É ferida que não se cala. É dor que nunca se esquece. Só Jesus na causa.

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